sábado, dezembro 18, 2010

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Viagem às Origens do Ser

De Ulisses a Garcia Marquez, passando por Ricardo Reis e Jorge Luis Borges, uma viagem de Retorno. Excerto de texto para ler Aqui, no Babelia, El País

domingo, novembro 21, 2010

Conselhos de Circe a Ulisses

Depois que estejam longe
as sereias
perdidas na névoa dos seus cantos
alonga os remos da tua nau
a direcção do teu caminho
terás de decidir, voltar
aos liames de seda das sereias
nunca mais, prefere
as rochas azuis onde o mar brada
mesmo que no tecto liso
do céu não se desenhem pombas.

11/2010

terça-feira, novembro 16, 2010

Play

Poema de Adriana Fernandez Lagoa

Juguemos a que el mundo se despierta
y nadie sabe adónde fue la muerte,
todos sucumben a la estruendosa vida
que aguarda en los estanques
donde ahogarse fue imposible.
Juguemos a que los insensatos sueños son factibles,
y a que la lluvia no cesó ni el sol se puso.
Juguemos a este juego ...

(Escrito em Madrid, 15/11/2010)

PLAY

Brinquemos ao jogo do mundo que desperta
e ninguém sabe aonde foi a morte,
todos sucumbem ao estrépito da vida
que aguarda em charcos
onde o afogamento é impossível.
Joguemos a que os sonhos insensatos são viáveis,
e que a chuva não cessou nem o sol caiu.
Joguemos a este jogo...

(Traduzido por J.T.Parreira)

quinta-feira, novembro 11, 2010

Os olhos de um neto

Com estes olhos
já vi uma estrela com medo das alturas,
já andei pelo arco-íris e já
estive com estes olhos no futuro.

10-11-2010

quarta-feira, novembro 10, 2010

Dá-me os teus olhos

Esses olhos do profundo coração
tomaram-me descuidado, olhos
maiores que o meu olhar
desprevenido, como tão
silencioso entraste no meu peito
Como posso agora
que estou preso a ti por limos
verdes, invisíveis, desprender-me?
O teu olhar continuará
a prender-me a esta matéria branda
que sai da minha boca
e que se chama vida.

9/11/2010

sábado, outubro 30, 2010

Hiroshima, Meu Amor


Não, tu não viste nada em Hiroshima
o sol explodindo nos olhos, dentro
da tua cabeça sombras
Tu não viste nada a acontecer
o nada de Hiroshima, nem a fissão
do Amor
Nada viste em Hiroshima
Dez mil sóis de temperatura
a cobrir a morte
como um lençol de cinza.

29/10/2010

Cinco poetas de entre os rios

"Tenho pousado o ouvido sobre o coração/ da terra. /Falava de amor, do seu amor/pela chuva,/ a terra." - Sherko Bekas, poeta da resistência curda.

Ouvintes das línguas árabes, tanto a língua dos média, como a do Corão, não consideramos que as mesmas sejam muito felizes para a fala poética.
O idioma árabe, de um modo geral, é áspero e gutural, mas a significação e a intimidade das palavras podem ser preciosas e então, como diria o poeta William Carlos Williams, ouve-se o sentido, quer seja em tradução para o português, inglês ou o italiano.
Os versos com os quais abrimos este artigo, sugerem-nos essa dimensão em que o sentido se transforma em sentimento da pátria, embora nos apareçam numa terceira língua de chegada (foram traduzidos do italiano).
A forma expressiva, até a irregularidade da sua métrica, seja como for propiciam o cântico, e, sobretudo, não se distanciam dos recursos da poética moderna. O seu autor, Sherko Bekas, nascido em 1940, ministro da Cultura da Região autónoma do Curdistão iraquiano em 1992, reúne na sua actividade poética o lirismo e a luta da resistência curda, o som telúrico de alguma da sua poesia não evidencia nenhum desusado bucolismo, é mais poesia para preparar a terra para um combate pela identidade.
Ibrahim Ahmad, considerado o maior romancista curdo contemporâneo, ao definir a poesia da nação curda e iraquiana, stricto sensu, abriu-lhe um amplo leque de abrangência de géneros que radicam na poesia mística, apologética, satírica, na poesia de amor, nos cânticos do matrimónio, das festividades e do luto. Uma poesia de liberdade também, que vem já de antes do império otomano e seguiu depois da dissolução deste e do Curdistão nos últimos 80 anos, com os vários géneros poéticos disseminados no Iraque, principalmente.
Também esse escritor, enquanto poeta elabora sobre uma poética de identificação com a terra - "Juro sobre este Curdistão de mil cores/sobre esta terra que é o meu paraíso", estabelecendo a identidade de um Pesh merga que resiste aos invasores da sua pátria. Os "resistentes" curdos, como a própria expressão Pesh merga indica, estão sempre de fronte erguida para a morte.

Não vou viver como servo
pleno de vergonha e ira.
Salvarei o meu país, o meu povo
com a vida pagarei a liberdade.
Não ferirei,nem usarei armas.

Vencerei ou morrerei.

Mas na sua língua poética, a poesia curda comunica entre si outro género de preocupações de origem filosófica, quando não mesmo radicadas num sentido histórico religioso.
De facto, preocupações ontológicas e metafísicas aliadas às raízes da ancestralidade. Por exemplo, sobre o bíblico Jardim do Éden, verde, num vale escondido do rio Tigre, rico em água, plantas e animais, na que foi a Alta Mesopotâmia onde esteve a primeira aldeia do mundo, e que se transformou num deserto por culpa de sistemáticos etnocídios – segundo a opinião de Laura Schrader, jornalista que desde 1975 denuncia as trágicas condições do povo curdo e tem dado a conhecer a sua cultura e os seus trabalhos poéticos.
"Somos roseiras nos vinhedos do paraíso do Oriente/ somos o sol que arde na escuridão da noite/ (…) somos o Eufrates, que brota de remotos milénios" - Sheikhmus Husayn, um dos poetas já falecido e mais amado no Curdistão Setentrional, autor de 7 volumes de poesia, que assinava com o pseudónimo de Gegherxuin (Coração Destroçado).

"Súplicas, salmos, ex-votos brindámos nessa hora
Pão, vinho e tâmaras da Babel embriagante
E de rosa o encanto
Logo aos teus olhos orando, oferenda imolámos
Da lágrima ardente em dilúvio as gotas juntámos
–Um rosário de pranto." – Cânticos à Dor, de Nazik Al-Malaika

Desta poetisa, nascida em Bagdade em 1923, a poesia tomou o rumo dos caminhos da introspecção ontológica, levando o pessimismo poético quase ao limite de uma linguagem filosoficamente estóica, de suporte de uma dor intensa, mas também intensamente lírica.
Nazik é a poetisa da tragédia da vida. No entanto, quando publicou a sua primeira antologia há mais de 50 anos, ao utilizar o vocábulo "noite", tornou-o símbolo de poesia, imaginação, sonho, beleza das estrelas, do prodígio do luar sobre o bruxuleante Tigre.

Outros poetas do Iraque, a maioria vivendo no exílio – diz-se que na década de 90 ficaram apenas cinco a residir no país – contudo escrevem uma poesia que caracterizou o estilo poético iraquiano, o qual é classificado desde o tradicional ao moderno, passando pelos limites do experimental, com temas que cobrem territórios comunicacionais como o amor, a guerra, as antigas sanções da ONU, o fascismo, a tortura, a prisão, o exílio, etc.
De resto, desde 1960, que os poetas iraquianos mais conhecidos (aqueles dos quais procuramos aqui dar notícia) introduziram na sua poética um novo imagismo, novas métricas e sensibilidades, como os poetas de todo o mundo.
Sempre visível, porém, a intertextualidade e uma espécie de vasos comunicantes, nos poemas comprometidos, nos cânticos populares e na poesia chamada de autor, alimentando no fundo uma poética com a marca da identidade de quem luta para manter intacta essa mesma identificação com uma cultura, património da humanidade.
A poesia de Latif Hamet, outro poeta Pesh merga, testemunha esse sentido de uma luta que nos parece ancestral, telúrica e, nem por isso, desprovida de lirismo universal, ainda que seja uma poética datada e muito regional:

Eu vou mãe.
Se não regressar,
serei flor desta montanha
torrão de terra
para um mundo
maior do que este
(…)
Eu vou mãe.

Se não regressar,
a minha alma será palavra
para todos os poetas.

quarta-feira, outubro 20, 2010

As mãos de Lascaux

As mãos de Lascaux estendem-se
até aqui, pequenas
marcas deixadas para trás
desde o fundo da terra
as mãos de Lascaux
não vemos, mas repartem o silêncio
que a pedra não fechou
Não se chamam mãos
chamam-se vento, amor e água
e medo
também penso em universo
embutido na parede.

16/10/2010

terça-feira, outubro 19, 2010

A Rosa de Milton

“E a rosa sem espinhos”
John Milton, (in Paraíso Perdido)
A rosa de Milton que passou
o veludo pelo rosto
tocando à vez o rosto e a noite
do Poeta, branco no branco, a flor
silenciosa
inundou de odor por fora
as demais coisas
que só a alma de Milton tocou.
16/10/2010

quarta-feira, outubro 13, 2010

As Luzes ao Fundo

Estaria perdido se ao longe
não visse
as luzes da costa, lanço
os meus olhos na corrente da noite
os meus olhos como âncoras
e da noite furto o seu instinto
do equívoco

Prouvera a Deus que a distância
entre a minha janela e a costa
não seja ilusória e não perca
o momento de encolher a saudade
e nas areias erguer um padrão
e pôr nos lábios
o meu coração como um tambor.

12/10/2010

segunda-feira, outubro 11, 2010

A poética da Expulsão (do Paraíso)

NO PARAÍSO

Poema inédito do poeta residente Rui Miguel Duarte

“no Paraíso, estive à beira de todas as cores
quando as manhãs acordaram nos meus olhos”
J. T. Parreira, “Expulsão do Paraíso”

Percorridos todos os limiares
e arestas negras, as artérias de granito
em vez da ondulação dos teus cabelos
trocadas as tuas carícias por um grito

culpados de todas as traições
de nos acolhermos ao colo de um pai estranho
extraviados da sabedoria de todas as cores
que falavam das manhãs acordadas de antanho

esquecidos das brisas lentas
das conversas sob as árvores ao fundo
da tarde, restou-nos a sombra do teu vulto
projectada como noite sobre o mundo

Mas na tua carne e no teu sangue
rasgaste para sempre a distância a frio
depusemos então as saudades à soleira da porta
reaprendemos então a alegria da Tua voz de rio

7/10/10

quinta-feira, outubro 07, 2010

Mario Vargas Llosa, Nobel da Literatura


A Academia Sueca, apesar de surpreender sempre, umas vezes pela negativa, desta feita redimiu-se e, contra todos os prognósticos e profecias da Sibila, escolheu a Língua de Cervantes.

quinta-feira, setembro 30, 2010

Nos cantos onde o poeta escreve

Poetas Brissos Lino e JTP, e o Maestro Pedro Duarte.
Poema a quatro mãos:

Nos cantos onde o poeta sofre
caminheiro de estranhos mundos
prenhes de perfumadas vibrações
sente-se a ressonância dessa ternura
doce e leda
nos cantos onde se escondem silenciosos
olhos infantis que esperam
a construção das horas
por aí se observam inesperados
interstícios do coração
e se acoberta a fantasia breve
dos homens livres
quando o vale de ossos secos
de papel
uma simples folha branca se agita e revolve
como súbito canavial
por entre sombras impolutas
e gritos de dar à luz
então o poema nasce
formoso
e não seguro.

22/9/10
(Brissos Lino)

No recanto sob a palidez da luz
em que as palavras no papel navegam
os cantos do poeta
são o mundo, numa folha
há conversas
que são frutos dos lábios, mas vêm
de raízes profundas e longínquas
os olhos do poeta, pacientes
retinas vão abrindo, vê-se
nos seus olhos, nos cantos
é onde não parece
mas o poeta é livre, enquanto
escreve é como a flor silenciosa
os cantos do poeta, salvam-no
do olvido.
As paredes não prendem o olhar
aos cantos do poeta, voa
quando menos se espera o poeta
não está lá.

23/9/2010

terça-feira, setembro 28, 2010

Dança

Nunca conseguiremos ser perfeitos
uma ave
como um desenho de vento
um corpo a saltar
de estrela em estrela, um pas de deux
onde roda o universo, duas pernas
como ponteiros de um relógio
nunca conseguiremos o ângulo raso
da beleza.

24/9/2010

domingo, setembro 26, 2010

Esquecimento, Hart Crane

Esquecimento é como a canção
Que, livre de ritmo e medida, flutua
Esquecimento é como a ave cujas asas se encontram,
Distendidas e imóveis, --
Uma ave que rodeia o vento infatigável.
Esquecimento é chuva nocturna
Ou uma velha casa na floresta, -- ou uma criança.
Esquecimento é branco, -- pálido como a árvore desolada
E pode enganar as profecias da Sibila
Ou sepultar os deuses.
Eu posso lembrar muito esquecimento.

(Trad. de J.T.Parreira)

segunda-feira, setembro 20, 2010

Com o poder da mímica

Com o poder da mímica
inventarei um outro
que do lado de fora da prisão
dos dedos
encherá a minha solidão
O seu silêncio alegre
em círculos
caminhando, será o vento
que veste as minhas mãos
será um cavalo ou uma estrela
uma mulher num rio
será um outro
que corre de mim
e cresce, move e reina
num sorriso de menino.

16/9/2010

sábado, setembro 11, 2010

Poemas sobre as Crianças do Holocausto

POEMAS SOBRE FOTOS DAS CRIANÇAS DO HOLOCAUSTO,
para ler AQUI



A Marcha

A morte não deveria ser obrigatória
em marcha
nestes pequenos pés
Uma fila de olhos sem regresso
pequenas dimensões
onde só deveria estar a alegria
vão
sem reparar que é enganosa
a sua infância tranquila.

sexta-feira, setembro 10, 2010

Tu sabes? (pergunta sobre o holocausto das crianças)

Poema inédito de Clélia Inácio Mendes

Tu sabes onde foram as crianças, Sabes onde estão?
Sabes porque se ouvem notas musicais de flautas
E ninguém dança…
Sabes porque há ainda marcas de anjos
No chão frio da tarde e delas nem traço?
Sabes das crianças, João aquelas crianças que espreitavam
Pelo arame pingado de sal de olhos
Debaixo do céu sem cor e trapos de silêncio
Por onde foram?
Senta-te um pouco na soleira da alma com a poesia na mão nua e a tinta
Do sangue nos caminhos por onde elas não passarão.
Aquelas por quem pergunto e não vejo, nem a sombra, nem o riso partido
Do espelho a que falta pedaços.
Eu fico também aqui sentada nesta pedra suja e gasta
Espreitando agora pelo arame pingado de sal, com os dedos crispados
E a boca despida de gritos.

quarta-feira, setembro 08, 2010

quinta-feira, setembro 02, 2010

Receita para fazer uma rosa

Uma abelha ou duas(...)
E a sépala, a pétala, e um espinho (...)
Eu tenho uma Rosa!


Emily Dickinson


Como se faz uma rosa, a rosa
imensa, com pequenos pólenes
salpicando o ar
A serenidade da pétala
com outra pétala, o amor
do estame vertendo
Dois saltos de abelha entre dois lábios
E toda a seda
que vem ao colo do vento.

18/7/2010

segunda-feira, agosto 30, 2010

Há fogo na Aldeia!



poema inédito do poeta Brissos Lino


Há fogo na aldeia!
debitam velhos urubus
de boca desdentada
atirando os olhos para longe
olha, olha! gritam os gaiatos
que brincam na rua
valha-nos Deus!
cospem os velhos sentados
à porta da taberna
na mornidão da tarde
enquanto os bombeiros correm
contra o tempo
e a dor. Nada que não se resolva
exclama o presidente
da Junta
cansados desta agitação soalheira
os velhos bebem mais um copo
os gaiatos voltam ao jogo da bola
os urubus tornam a baixar os olhos
ao tricot
e os bombeiros continuam
a correr contra o tempo
e a dor.

27/8/10

sábado, agosto 28, 2010

O Castanheiro de Ana Frank

Foto: El País.

Ana seguia as estações pelas folhas
do castanheiro, um detalhe
sem ruído
podia ver-se das janelas
vigiadas
o castanheiro de Ana Frank
o vento preso aos ramos
a primavera e o outono
o triste voo das folhas, podiam
ver-se desde a casa
de onde os olhos de Ana
na floresta, se evadiam.

25/8/2010
Publicado ineditamente no blogue do poeta Brissos Lino

segunda-feira, agosto 23, 2010

O suicídio do Poeta

"Fugido de alguma vigia de metro, cave ou sótão,
Um lunático precipita-se para os teus parapeitos"
Hart Crane, The Bridge of Brooklyn, trad. de João de Mancelos


Atraído pelas águas lavradas
pelo rasto de prata do navio
Hart Crane brilhou
no ar
Os bicos berrantes
das gaivotas ensaiavam
No Golfo do México
cortaram o espaço
entre as nuvens e a espuma
O dia derradeiro
Crane tomou-o nos seus braços.

28/7/2010

segunda-feira, agosto 16, 2010

Poesia para a Música: Schubert

Poema inédito oferecido pela Autora, minha amiga de infância.

A voz que ouvi não era o ramo que tombava breve
Na floresta
Era o suave toque de uma asa repentina ou mesmo um pássaro
Assustado que se escondia
A voz não era o ondular do piano mansamente
Na imensa sala dos meus olhos
Era um cheiro de terra e orvalho
Um sopro morno que abraçava e enlaçava o corpo
Lá nesse lugar onde a alma estremece.
Depois parou.
(Clélia Inácio Mendes)

sexta-feira, agosto 13, 2010

Uma bela viagem para Ítaca


Uma bela viagem deu-te Ítaca.
(Kaváfis)

Se pensas regressar a Ítaca
escolhe o amplo mar
não te percas nas esquinas
da tua mente, nos espelhos
que mostram o teu rosto
Vai como estás, tu apenas
és a única equipagem
Se partires um dia rumo a Ítaca
não penses
que o sal e o orvalho das manhãs
impedirão as cãs no teu cabelo

Não há Penélope nem Telémaco
que te esperem
nem cão, porque chegas contra o vento.

7/8/2010

Poema publicado originalmente (inédito) em A Ovelha Perdida

quarta-feira, agosto 11, 2010

Finalmente a Guerra

“E a guerra acabou sem chegar cá.”
(Manuel Alegre, Alma)


Finalmente a guerra
frenesim inusitado
quando mil sóis explodem
num tempo esconso
e o rasto dos cometas é vermelho
e fogo
o negrume passeia pelas caras
dos mancebos
o medo pendurado nos olhos
de mulheres e velhos
crianças que constroem castelos de lama
e faz de conta
na neve suja
entre estampidos e sorrisos
Era uma vez uma guerra anunciada
dizia-se que andava para lá
daqueles montes
mas morreu antes de chegar à aldeia
deste lado do mundo
a este cu de judas
nem uma guerra chega.

4/8/10
Inédito do poeta Brissos Lino

segunda-feira, agosto 09, 2010

Lição sobre como acabar um poema

ATÉ AO FIM

Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

(Nuno Judíce)

terça-feira, agosto 03, 2010

O que disse o silêncio das pedras de Jericó


JERICÓ

Buzinas quebraram grossas muralhas
feitas de silêncio e soberba
nem os vigias cananitas conseguiram
saber a tempo o som telúrico
lançado contra as pedras
e evitar a destruição
as pedras de Jericó disseram
que passado um revolto Jordão
tudo é possível.

23/7/10


(Brissos Lino)

segunda-feira, agosto 02, 2010

Duas poiéticas que levam a obra a Abril



Se na poesia contemporânea portuguesa há dois poetas distintos no seu discurso poético e na sua poiética (o modo de construir seus poemas), são, sem dúvida, José Gomes Ferreira e António Ramos Rosa.

Aquele trabalhava a metáfora lírica, grande parte dos poemas inserindo-se mesmo no que poderíamos dizer proximidade do surrealismo, mesmo nos seus poemas cujos referentes eram Memórias, «Na infância da janela do primeiro andar/ aquela rapariga de corcel nos cabelos» ou «O sol corria/ nos bibes do vento»;

Ramos Rosa, por seu turno, está integralmente dedicado à poesia pura, e não encontro melhor exemplo do que o conteúdo do seu livro “Ocupação do Espaço”, e o das suas mais recentes obras. Poeta da linguagem, talvez o Saussure ou o Roman Jakobson das relações entre linguística poética e a ciência dos homens, uma antropologia no poema: «Oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou.» ou «tenho o coração confundido e a rua é estreita», «soletro velhas palavras generosas» «Não posso adiar o amor para outro século»
É interessante pois notar um pequeno poema de ARR cujos referentes são dois: Abril e o próprio Ferreira, o autor de Memória das Palavras. O gosto de falar de um poeta, fazendo-o crescer por detrás do sol, evocando-o profeticamente, sem a prisão cristalina e rochosa da Sibila (que não tem lugar na Poesia), como “homem de Abril”.
O mês de Abril sempre surgiu nos poetas com a força das suas próprias raízes, que despontam, ancestrais. Desde Chaucer ( When April with his showers sweet with fruit) a Withman, até ao definitivo “Abril é o mais cruel dos meses, gerando / Lilases na terra morta).

sexta-feira, julho 30, 2010

Ser herói no Alentejo

Ler Aqui

"Acaba de ser lançado o livro que inspirou José Saramago a escrever a obra «Levantado do Chão». Trata-se de um livro escrito por um camponês, analfabeto, mas que aprendeu a escrever para contar a vida enquanto trabalhador rural e relatar o sofrimento no campo alentejano. O manuscrito de João Domingos Serra foi parar às mãos de José Saramago quando este foi para Lavre, Montemor-o-Novo com a intenção de escrever um romance."

quinta-feira, julho 29, 2010

A Mosca


“no seu peito insuflou a coragem da mosca”
Ilíada 17.570

A águia não apanha moscas
— pois não, nem a poesia
não sabias? não haverá método mais prosaico?
mais indolor?
a mosca, cuja coragem foi outrora clonada no peito de Menelau
ah se tivesse aqui o Luciano — não o meu pai,
o outro, o de Samósata,
pedia-lhe ao menos um discurso
um arrebatado elogio
e um culto e rebuscado encómio
talvez conseguisse comover a sua inteligência
e apelar ao seu bom senso
mas o bicho danado, estúpida filha
de uma… mosca parideira
não deixa de importunar o condutor
de lhe zumbir o ângulo de visão
e lhe volitar à roda da cabeça, penetrar nos ouvidos
e na esfera dos olhos,
de lhe debicar a pele
e o condutor lá tem de descolar as mãos do volante
para atender às solicitações da fulana
pária da vida, invasora dos habitáculos alheios

— Bem, se não temos o Luciano,
temos o Parreira — intervém a Cristina
como é belo o senso prático das mulheres quando é preciso —
se não vai lá com discursos de prosa
dá-se outra estética,
a da mão que brande os versos e mede o livro
uma pancada de metáforas bem escandidas
e já era!
28/07/10
(Rui Miguel Duarte)

segunda-feira, julho 26, 2010

O Cão de Ulisses como outra Penélope


O VELHO CÃO DE ULISSES

o velho cão de Ulisses é outra Penélope
mas com olhos que enxergam
dentro dos olhos de quem olham
olhos que sabem descansar
numa almofada de serenidade
debruada a fidelidade
olhos gastos
que já viram tudo
mas recusam fechar-se
na desistência e não confundem
a casca com o fruto

aguardam com paciência
as alegrias do reencontro.


24/7/10
(Brissos Lino)

segunda-feira, julho 19, 2010

Frederic Chopin-Nocturne In E Flat Major, Op.9 Nº 2

Longo título que afasta no vento
uma pequena pena
Sobre as cores de um jardim voa
Branco excessivo
Desliza como se fosse
o próprio ar, a própria água
num silêncio rumoroso no ouvido.

17/7/2010

sábado, julho 17, 2010

António Ramos Rosa

O rejeitado do Prémio Nobel

António Ramos Rosa - A rejeição consciente de um lirismo

A arte literária encontrou no Século XVIII e IX a lírica como a mais poética forma de poesia, uma forma descentrada do mundo exterior, conhecido por fora pelos homens, para o mundo interior do próprio poeta. Este passaria a expressar-se perante o mundo com o lirismo da sua observação. O lirismo seria o que transformava as pedras em rosas, e estas em pães. Seria necessário um equilíbrio. Uma tensão entre o que se cantava e o objecto do próprio canto.

António Ramos Rosa, não apenas como grande poeta da língua, mas também grande pensador sobre o fenómeno da poiética e antologiador da valorização da nova poesia portuguesa (anos 60), apontou o lirismo nesta poesia ao escrever sobre poetas (Incisões Oblíquas, A poesia moderna e a interrogação do real I e II.), mas objectivamente e, como tal, conscientemente rejeitou-o, salvo melhor opinião.

O padrão das palavras que ARR emprega não é normativamente lírico, embora esteja nele a expressão pessoal do poeta. Estilo e expressão próprios do poeta. António Ramos Rosa interrogou o real de outro modo. Com uma Poética e uma Poiética pensada e elaborada. A sua palavra não era tributária do lirismo, mas era, segundo o seu próprio pensamento, uma palavra poética. “A verdadeira poesia ignora a afirmação fácil”, escreveu, por vezes a facilidade na poesia reveste-se da superfície do lirismo, este às vezes cega.

Poeta sempre na chamada, por ele próprio, “linha da sombra”, à partida da qual a claridade poética surge, “com a sua margem de indecisão, de interrogação, de acaso, de aleatório”. Exemplos de não submissão ao padrão do lírico? E de uma integração da plena verdade, nua e crua, poética?

“Não trago lâmpadas nem armas/Estou num quarto, não há frio, alongo o ouvido para o silêncio do horizonte / é um dia baço como um pão”

“Escrevo versos ao meio-dia /e amorte ao sol é uma cabeleira/(...)/Estou vivo e escrevo sol”

No entanto, em um dos seus primeiros e mais conhecidos poemas inserto em o Grito Claro, de 1958, (poemas imagísticos no seu todo, mas não líricos), ligados ainda a um condicionalismo lírico-social, o poeta tem estes versos deliciosos em “O Funcionário Cansado”:

“o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
E debitou-me na minha conta de empregado”

E estoutro, de 1990, do livro O Sim e o Não, Um deus adormecido num jardim ( só o título do poema já carregado de lirismo):

“Eu vi o seu sorriso sob a sombra das folhas
E vi-o adormecer. Senti que mergulhava
em plácidas águas.Um tesouro
fulgurava entre as pedras e os limos”

Não ousaria dizê-lo, para terminar, mas sempre digo que a poética de ARR tem na sua magistral e única Poesia a presentificação da disciplina da Filosofia, hegeliana por suposto( basta ler Ocupação do Espaço). Perdoem-me este ensaio.

(Escrito em 17/7/2010, para o Grupo Leitores da Poesia de ARR, no Facebook)

sexta-feira, julho 09, 2010

As paisagens dramáticas de Turner

Uma breve écfrase à poética da sua pintura
***
Diz-se que Turner interpretou na tela todos os temas de uma forma épica. Diz-se que começou como pintor topográfico e pouco a pouco foi se inclinando para as paisagens, principalmente as marinhas. Escreveu-se dom de transfiguração poética, liberdade de composição, violência tonal (nos tons) para a fase final da sua obra, talvez a mais impressionante e universalmente conhecida.

A verdade é que ao transportar para as suas obras toda uma visão épica, uma minúcia dos topoi, e todo o seu ponto de vista sobre as cenas marítimas, Turner usou sobretudo a dramaticidade dos confrontos, da luz / sombras; calmaria / tempestades; céus prontos para acolher anjos ou demónios, consoante o dramatismo ou o lirismo das suas cores.

Não há estados melancólicos nos seus quadros, nem mesmo nos mais figurativos e livres do clima da aspereza e da tormenta. Paisagens carregadas de dramatismo, colorismo dramático, paisagens com um drama romântico que o próprio romantismo literário utilizou na poesia, embora estivesse a surgir o Realismo, a Revolução Industrial e o Romantismo prestes a ser sepultado.

Um realista? Sim, quando nos conduz ao cerne das tempestades marítimas, por exemplo, mas a sua paleta e a textura arrebatadora da conjugação das suas cores, sob a luz e as sombras, já prenunciava o Impressionismo; a fealdade bela de alguns dos seus quadros, porventura leva-nos um pouco mais longe, até ao expressionismo. E a aplicação da luz sobre as coisas, sejam os elementos da natureza, do céu e do mar, dos barcos ao trem a vapor, do Grand Canale calmo às tormentas, e o amálgama que disso tudo fez com a fulguração das suas cores misturadas e já sem formas definidas o colocaram sob a perspectivação do abstraccionismo avant la lettre, que, disseram críticos de arte, veio a surgir nas formas e nas cores fundidas, como nas obras de Kandinsky e de Paul Klee.

Nas telas de Turner, que nos colocam diante da rudeza dos elementos naturais, os seus redemoinhos não são de água, nem de ventos, são de luz, assim toda a teoria anterior da paisagem convencional estava subvertida. Não haveria já lugar para a mimésis aristotélica, mas para a criação pura e simples de algo novo, a que o vocábulo hebraico “bara” serviria, não fosse o exagero do seu uso neste caso. William Turner foi um intérprete das atitudes agónicas, não se pode afirmar que as suas interpretações pictóricas não sofram de passionalidade. Turner pintou a exaltação da natureza, no que ela tem de mais agreste e de mais anti-paixão.

Foi essencialmente um poeta da cor, dos confrontos entre luz e sombras (não trevas), um poeta das tempestades. Não pintava formas, mas estados de cor, atmosferas exteriores da natureza, névoas com conteúdos.


Publicado como inédito em http://ab-integro.blogspot.com/

sábado, julho 03, 2010

Acendo a boca




De gabardina, acendo a boca num cigarro.

(Gregory Corso)


Acendo a boca
num cigarro curto
como quem engatilha o revólver
numa esquina sombria

acendo a boca
num grito mudo
como quem fala para dentro de si
em grego

acendo a boca
num beijo único
alheio à paisagem urbana
mas capaz de tudo
e de nada

acendo a boca
numa gargalhada quente
inesperada
e estremeço a rua como se espirrasse
por via de uma alegria
violentamente incontida.

2/7/10

(Brissos Lino)

terça-feira, junho 29, 2010

Odisseias - Alguns Aspect(r)os


ODISSEIAS - ALGUNS ASPECT(r)OS


Plaqueta de J.T.Parreira

Penélope

Guia o fio da teia
Penélope
com ele tece ao sol o ausente
corpo de Odisseu
sob a prata do luar
torna ao início
desmancha e guia
o fio do sol até ser Ítaca
no horizonte
apenas uma linha
e os vestígios do amor
Penélope elimina
afaga a noite
o que a saudade fia.

Calipso

O paciente Ulisses afunda nos cabelos
da ninfa a sua mão, enquanto Atena
calça os pés
com rajadas de vento e sobre o mar
brilhante vai a Ítaca.

As viagens contadas

Nada disse Ulisses à mesa de Alcínoo
só através do velo
da imaginação.

Os Tormentos que Ulisses viu


Sisífo

A pedra sombria e sem vergonha
uma nuvem densa, cheia
mineral, empurrada a ambas mãos
de Sísifo
até ao cume onde primeiro
os olhos chegam
que o exausto coração.

Tântalo

Como se fosse repentina
névoa, a fugir do chão
a água do lago sublevada
mais a sede vinha e a fronte
de Tântalo se abaixava
- dizia Ulisses a Alcínoo
que um deus tudo secava.

sábado, junho 26, 2010

Quando David compôs um Aleluia


Quando David compôs um Aleluia
Bate-Seba iluminou, fora do leito
o seu joelho, reacendeu a água
pequenas pérolas na torrente
tranquila, quando o intento
de David compôs na lira
um Aleluia, a alegria
ondulou nos pastos verdejantes
com passos de silêncio.
21/6/2010

quarta-feira, junho 23, 2010

Amores Decantados

Amores Decantados
e outras actividades no Grupo Poético de Aveiro. Principalmente a evocação, no dia do nascimento de Pessoa, 13 de Junho.

segunda-feira, junho 21, 2010

Evolução das Espécies


“E disse Deus: Produza a terra seres viventes segundo as suas espécies”
Génesis 1:24

Não há evolução das espécies

Não o digas ao poeta
de olhar pendurado da dor da aurora
e da expectação de um voo de pássaro

ele dir-te-á
que o poema é filho
da sua uranografia
enteado do temor de que
o seu coração ganhe asas
e se volatilize, porque é no peito
que ele é dado à luz

como se fosse
o último e o único
na sua espécie e género
como única e última
é a dor
cada dor que lhe espinha a carne

Não há evolução das espécies
cada uma é gerada da boca do poeta

digna de ser aclamada
por uma nova e última e única
salva de palmas

18/06/10

(Inédito do poeta residente Rui Miguel Duarte)

sexta-feira, junho 18, 2010

Ulisses por causa do canto das sereias

Ulisses sou
e vou cortando o vento
como um mastro
amarras como braços o corpo
me protegem do que sou
do hidromel nos ouvidos
enquanto as ondas sobem
do fundo
da boca de Posídon
Ulisses sou
um com a nau
e meus olhos são as gáveas
de onde furto ao horizonte
o mistério e o futuro.


Poesia publicado ineditamente em A Ovelha Perdida, hoje

segunda-feira, junho 14, 2010

Ballet: Sapatilhas que flutuam



Há sapatilhas que flutuam a memória

Há sapatilhas que flutuam a memória
dentro da máquina do tempo
não obedecem às respeitáveis leis
de homens doutos
sapatilhas que dançam ballet
sobre a espuma dos dias
a ilustrar réstias de lembranças
frágeis
ternas
que desenham um retrato a sépia
entre um par de tranças infantis
e uma gargalhada inteiramente
franca

guardadas na gaveta das coisas boas
elas sabem a gomas e chocolate
dispõem-se na forma de um sorriso
feliz.

4/6/10

(Brissos Lino)

quinta-feira, junho 10, 2010

Confidências


As confidências demoram-se no céu da boca
como as nuvens lentas do Outono.
Nuno Júdice


As confidências começam nos olhos
depois como nuvens altas
se deslocam, vão lentas para as mãos
o estuário dos dedos e falam
através da seda das carícias
As confidências demoram-se no palato
entregam-nos o prazer do mel
a língua cheia de frases, guarda
algumas palavras como amor
juventude, beleza, flor, e medo até
de perder o sentido do amor
As confidências começam no sangue
que bate nas paredes do coração
e vêm respirar aos lábios
que colam a outros lábios
tudo o que dissemos em silêncio.

sábado, junho 05, 2010

Procura-se: Perdido na Cidade

Perdido na cidade
entre homens e bichos
o caminheiro processa a sua
habitual peregrinação laica
todos os dias
às horas banais
as pernas o levam exactamente
aos mesmos poisos
inserido em tétrico bando
de aves cinzentas
e mudas
nem sorrisos envergonhados nem o olhar
musical de uma criança
lhe deixam vislumbrar sequer
um pequeno raio de sol
que saiba aquecer
a alma cansada.

3/6/10

(Brissos Lino)

quinta-feira, junho 03, 2010

Do livro inédito: "Fluxos da Memória":

Ai, se o vento me levasse
Na orla infinda das marés
Que ainda me salpicam!

Ai, se o vento me levasse
No espasmo matinal
Do cheiro eterno das flores!

Aí permaneceria, cândida, pura...
No seio de uma alegria sem fim
Que me acalentaria a alma.

Já não choraria mais
A criança que não fui
Ou a infância que não tive.

Voltaria a brincar com os infantes.
E, finalmente, sorria
Na transparência de um desejo inocente.

(Isabel Rosete)

poema cedido pela autora para o Poeta Salutor

domingo, maio 30, 2010

O Silêncio Poiético

A poesia, mais do que outro género literário, consubstanciada no Poema é tanto mais verdadeira quanto maior for a contradição a que abre caminho. A dialética dos contrários faz de qualquer poema um grande poema, porque se não houver tensão, dialogia na pura aplicação dos ensinos de Bakhtin, confronto no poema, não existe verdade poética. Novalis dizia-o, «quanto mais poético mais verdadeiro» porque «a poesia é o autêntico real absoluto». É preciso por vezes refutar sujeito e objecto.

Na instauração, digamos assim, da obra de arte que é o poema, na poiética, a obra-no-acto-de-fazer, o silêncio é a sua matriz tanto quanto a palavra.

A poesia não nasce do ruído

O ruído não é poesia, poderá ser matéria de poema, poiético, como o foi para Álvaro de Campos, no dealbar do modernismo, o barulho da civilização e da maquinaria na Ode Triunfal ( Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! ) ou mesmo as interjeições na Marítima ( Grita tudo! tudo a gritar! Ventos, vagas, barcos, [...]Eh-eh-eh-eh![...] )

Mas a poesia não nasce do ruído, tal como a música, a sua produção, direi de ambas, enquanto poiesis no vero e amplificado sentido aristotélico vem da planície dos silêncios, onde a palavra está no caso da poesia. No dicionário? Pois bem, sim, Drummond de Andrade disse-o, para se buscar no reino das palavras o poema, um vocábulo no seu limbo, no seu estado de dicionário, em conjunto com outros onde reside o poema, só e mudo. Silencioso.

Há do mesmo poeta uns versos exemplares sobre a luta com as palavras, que exprimem o paradigma do silêncio matinal transposto para o acto da escrita:

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.

Elas são muitas, eu pouco, e está estabelecido o diálogo, onde o poeta se dimensiona em minoria, e dessa quadra pelo menos (pois o poema que ela inicia é longo), surge uma certeza, não há vencedores nem vencidos, há apenas luta, no mais puro sentido grego, numa atitude agónica.

O poema parte do silêncio, sem dúvida, mas o silêncio enquanto palavra no poema é o quê? Há em cada poeta lexemas recorrentes, vocábulos que isolados têm o rigor da sua morfologia, são significantes rígidos, quase nunca são anfibologias – para usar uma expressão de Roland Barthes -, todavia em conjunto com outros exibem uma qualidade semântica diversa. São espermatozóide e óvulo, são embrião no poema fecundado.

Eugénio de Andrade, para falar de um dos maiores poetas contemporâneos da nossa língua, tinha um léxico repetitivo de palavras como lugares de beleza, onde a sua poesia passa como um caudal heraclíteo por ter uma água sempre nova no mesmo rio poiético. O desejo de «juntar palavras»: mãos, dedos, olhos, rios, fontes, choupos, juncos, folhas, espigas, fenos, rosas, pólen, frutos, romãs, laranjeiras, aves, cavalos, lume, fogo, luz, verde, carmim, púrpura, brisa, dança, flauta, montes, nuvens, astros, estrelas, luas, charcos, a noite e a madrugada. Um percurso musical sobre as mesmas teclas, escrevi em 2005, num artigo intitulado As mesmas teclas de Eugénio de Andrade.

Há uma exigência por parte das palavras do poeta para figurarem no poema, uma dessas palavras é o silêncio, quanto a mim.
O silêncio no poema não é um contraponto da voz, nem de uma presença, nem sequer é uma ausência. O poema é uma linguagem e como tal comporta tanto o silêncio como a palavra.
Há palavras que no poema produzem silêncio, um silêncio interior, uma negação da voz numa dialética de esquecer/ lembrar, uma dessas palavras é o vocábulo Morte, morte no seu sentido filosófico, metafísico e religioso, lato senso, universal, e restritamente como a morte de alguém.

O silêncio pode introduzir-se num texto e ferir os nossos sentidos, porque o escritor é um dador de sentidos.

Um exemplo da história do século XX é significativo; Jean-Paul Sartre escreveu em 1944 o que a Europa andava a esconder e a silenciar, um estranho artigo sobre a maior catástrofe desse século, A República do Silêncio.
Começa o artigo que “Les Lettres Françaises” publicou em 9/9/44, a afirmar: «Tínhamos perdido todos os nossos direitos e, em primeiro lugar, o de falar», os franceses, mas sobretudo os judeus, deportados, humilhados, exterminados em silêncio. Essa república a que Sartre aludia, era a da Resistência ao nazismo, no silêncio e na noite, a responsabilidade individual de enfrentar a morte sem denunciar, mas era também o outro silêncio, o de «ignorar» o holocausto de milhões de judeus nos campos de extermínio. Porque nesta acepção do termo, o silêncio é o crime de se esconder alguma coisa.

Mas existem no poema aquelas palavras que o já referido Roland Barthes apodou com alguma ironia, numa simbiose de lexemas feliz, como palavras-maná. Segundo esta classificação, tais palavras são aquelas que podem responder a tudo. «Não será forçoso haver sempre, no léxico dum autor, uma palavra cuja significação ardente, multiforme, inatingível e como que sagrada dê a ilusão de se poder com ela responder a tudo?» Barthes dizia que essa palavra estava no texto à deriva, pode fugir a qualquer tópico. Dá como exemplo a palavra «corpo». Ou como o vocábulo «silêncio», teimosamente usado em muitos poemas, que por meu turno dou como paradigma.

Por vezes toma a forma da palavra-cor ( também um conceito criado por aquele filósofo da Linguagem). Nesta perspectiva, há um poema breve de Gerardo Diego, poeta e antologista da Geração de 27 em Espanha, que traduz bem o silêncio através de uma adjectivação poética, com colorido, que torna palpável o sujeito poiético desses brevíssimos versos de poema-imagem:

Habrá un silencio verde
todo hecho de guitarras destrenzadas
La guitarra es un pozo
com viento en vez de agua (poema a Guitarra)

A combinação poiética da palavra com o resto do poema

Uma só palavra pode trazer ao poema a força que se pretende lograr, por vezes, com dois ou três versos, frequentemente salva mesmo o poema do pastiche ou déjà vú. A palavra certa, que corresponde psicologicamente, e semanticamente sobretudo, ao que o poeta quer dizer. Todo o poema se sente nessa palavra, numa palavra média, como tal no exemplo seguinte:

“Ao longe com o vestido como sombra / passava, carregada de mágoa / (...) pendurada / no cântaro passava. // É a mulher samaritana / que vai ao poço de Jacob / buscar o silêncio da água.” (poema A Samaritana)

Ao falar do «silêncio», poderia falar de outros vocábulos (a palavra média, que Barthes inventou na escrita sobre linguística e memórias da escrita que foi originalmente a sua), vocábulos tais como pássaro ou ave, como significante de liberdade, água, às vezes no lugar de vida, outras significando o contrário do fogo. Palavras sempre contidas, seguindo o ensino de T.S.Eliot, segundo o qual «a poesia não é dar rédea solta à emoção».

As palavras no poeta são quase sempre o equivalente verbal ao que ele vê, ao que ele ouve, ou à sua personalidade; se for um poeta metafísico, claro que as palavras equivalem ao seu estado de espírito e sentimento também. Materializações que o poeta gostaria de erguer, um corpo do pó.«Eu acredito/ Embora não as tenha encontrado, que possa haver/ Palavras que são coisas» - escrevia Byron no seu Childe Harold.

O silêncio nas culturas greco-romanas, nas semitas, nas ptolomaicas, foi também objecto, foi coisa. Uma criança, um dedo sobre a boca simbolicamente, uma estátua ptolomaica representando Harpócrates quando criança, mistura de homem e de deus Hórus.

O silêncio, na Física, corresponde a O decibéis, corresponde a sinal nenhum. Com a expressão «um silêncio eloquente», entra no domínio dos tropos de linguagem, como um oxímoro; pontua uma grande verdade silenciosamente, acerca de qualquer coisa.

Ao falar do silêncio não tenho a certeza de ter atingido um cerne ou de ter sido percebido. Talvez porque pertença a um projecto pessoal. Talvez o meu vocábulo médio de eleição seja por isso «silêncio», talvez esta palavra reúna toda a virtualidade da poiética que trabalho, um pouco ao arrepio da aristotélica mimesis, porque a imitação é a cópia do falado, e o silêncio é o nada virginal de onde saem as coisas que conhecemos da Criação. Criar a partir do silêncio foi atitude, um gesto, uma prerrogativa de Deus, o poeta é um «pequeno-deus», ainda hoje na expressão quase secular de Vicente Huidobro, poeta chileno que correspondeu ao modernismo com o criacionismo na época da Geração espanhola del 27.

Talvez seja uma palavra recorrente que dá caminho a outros e diversos conceitos, que dá a mão a outras palavras que nela estão contidas. O silêncio a partir da mitologia que acabou por dar significantes à língua helénica é prefigurado por um deus com o dedo na boca - já o referi -, assinalando com o gesto o calar. O silêncio é persuadido por esse inefável gesto. Ovídio falava daquele «que reprime a voz e com o gesto os silêncios persuade.» O silêncio, hiperbolizando Álvaro de Campos, é no poema «ser nada», «ser uma figura de romance», ou a representação grega do deus-recém nascido, ou a gráfica representação do dedo sobre a boca, mantendo o sigilo. O silêncio no poema é tudo.

quinta-feira, maio 27, 2010

Voo de Ti


Inédito do poeta Brissos Lino

Voo de ti rumo a um amanhã
que me desvenda uma larga
planície verde
salpicada de amarelo
vivo
extasiam-se-me os sentidos
de alto a baixo
porque só a partir de ti
sei voar
rumo a um amanhã
que pode ser um oceano
de prazer
uma epifania dos sentidos
ou um céu azul limpo
gentilmente bordado com fios
de seda e sonho
se não voar de ti é só porque
alguém me cortou
amplas asas
pedi que me investigassem o crime
e disseram-me que talvez
tenhas sido tu, não? Há cada coisa
que se faz por amor…

19/05/10
(Brissos Lino)

domingo, maio 23, 2010

A Mulher de Lot

They say I Looked back from curiosity
Wislawa Szymborska

Dizem que olhou para trás pela única esperança
que Deus pudesse ter mudado a sua mão
talvez se dissipasse o fogo
na órbita do sol, talvez o enxofre
fosse levado até à orla marítima
do vento
Dizem que olhou para trás por admiração
para ver um fogo a competir com outro fogo
Dizem que olhou por um equívoco
que estava a ver o princípio do mundo
Dizem que foi por teimosia
que a flor azul relutava
contra o fio dos seus cabelos
Dizem que por inexperiência olhou para trás
Dizem que olhou por curiosidade
a certa altura do primeiro relâmpago
a riscar a noite e a dissipar a dúvida
Dizem que olhou para trás por um vestido
que ficara sobre a cama de um modo leviano
Dizem
dizem que foi o coração que olhou para trás
porque este é um órgão imprevisto
cego que anda em busca de si mesmo.

( © poema da década de 90, mas nunca editado em livro)

quinta-feira, maio 20, 2010

Um "thriller" psicológico em poema



O EXACTO MOMENTO DO CRIME

do poeta residente Brissos Lino

O assassino esconde
dentro de si
o exacto momento do crime
transita-lhe quente
nas veias
escorre-lhe pelas paredes
da consciência
e quando chega aos pés
ata-lhe os sonhos
a um poste negro
de imobilidade
e impotência

o assassino não morre
vai morrendo devagar
porque a vida acabou
no exacto momento do crime.

18/5/10


(Brissos Lino)

quinta-feira, maio 13, 2010

Linha 4

As palavras simples anunciam
vêm resolver a espera, vêm
do fundo as carruagens
um vento se aproxima
vento metálico a travar
sobre os carris
Os meus olhos testemunham
esperam a imobilidade
do comboio, abarcam
toda a extensão do pássaro
terrestre
Entro depois em olhos silenciosos
sentados lado a lado.

12-5-2010

sexta-feira, maio 07, 2010

1953

Foto: Lisboa, 1953
É interessante como pequenos detalhes
estão contra o olvido e são românticos
na infância, ouvia conversas
que a seguir rasgava
era a guerra na Coreia e tinha medo
que levassem o meu pai, figura esguia
em quem pendurava a minha mão.
5/5/2010

quarta-feira, maio 05, 2010

O sapato no pé do poeta:


O sapato do poeta

Sapato que se preza olha em frente, poema inédito

Sapato que se preza olha em frente
sempre em frente
levanta a biqueira quanto possa
alinha com as linhas do futuro
procura sempre
o mais longe

sapato que se preza veste o pé
de quem serve
adapta-se-lhe como uma pele macia
de boa qualidade
- é melhor para os dois -
e olha em frente
sempre em frente

sapato que se preza
conta com uma retaguarda sólida
bem assente no chão
mas olha em frente
sempre em frente
de onde vem a luz.

27/4/10

(Brissos Lino)

domingo, maio 02, 2010

O poeta diz o poema

O poeta dirige os ritmos cardíacos
dos ouvidos
onde entra seu poema
Com os cinco dedos da mão direita
modela o silêncio, é um Cícero
na majestosa mão erguida
O poeta segura a cascata
de águas limpas do livro
não tem pressa, é preciso
que as palavras se respirem.

29/4/2010

(inicialmente publicado no Facebook)

quinta-feira, abril 29, 2010

O poeta: «Quero dizer um piano»

Poema inédito do colaborador/poeta residente Brissos LinoQuero dizer um piano
na tua boca
aconchegar-te uma intenção de amor
sobre o peito
sussurrar-te aos ouvidos
uma bela canção napolitana
até chegar a ver uma flor amarela
envergonhada
a boiar nos teus cabelos

quero depositar-te o Sol no regaço

e depois esperar toda a sinfonia
que escorrerá
dos teus olhos.

21/4/10


(Brissos Lino)