quinta-feira, fevereiro 28, 2013

PIQUENIQUE NO ÉDEN




“É inútil a tentativa de um piquenique no Éden."
Elizabeth Bowen 
 


 
 Sentados diante de uma maçã- é costume
dizer-se –
foi o último piquenique no Éden, depois
o chão tremeu, com aquela reverência
quando Deus passa, quando Deus faz o silêncio
com seu olhar telúrico, o lugar
crescia como a sombra do sol inclinado
a desolação
a terra nos lábios que o fruto deixou
o medo entre as palavras.

28/2/2013
©

("Adão e Eva no Paraíso", de Paul Rubens e Jan Brueghel, o Jovem)

domingo, fevereiro 24, 2013

DIA DE CHUVA



Rua de pedra gasta de agua onde as poças
espelham arvores com coragem de flores
O brilho negro das botas reflecte
As cores do arco iris no chapéu de chuva
Nevoa doce da tua carícia molhada no cabelo
Lava-me os braços nus.

Fixo os olhos nas cores do arco iris
No chapeu de chuva que pinga pedaços
De ausencia nas poças onde se espelha
O sorriso com promessa de regresso.

O brilho negro dos cabelos na caricia molhada
lava-me o cabelo que reflecte o negro
das botas na pedra gasta da tarde.

Fev 2013

© Clélia Mendes
         
 




quinta-feira, fevereiro 21, 2013

POEMA PARA OS QUE ANDAM DE “METRO”



Levantar-me, mergulhar no “metro”(...)
sair (…) para uma foz de estrelas”
Vicente Gaos


Ainda com sonhos pelo meio, as nuvens
que cada cabeça procura dissipar
homens e mulheres multiplicados
como nos espelhos em silêncio, esperam

a noite ainda nos olhos, no tunel
o tubo vem do fundo da luz
para comprimir os perfumes e os corpos
actores de todos os papéis, rostos
com todos os vícios

entram e sentam-se com a alma
ao colo, um jornal, um livro
ou a carteira
a insónia começa enfim a partir-se
como um vidro em todos os ruídos.

©

sexta-feira, fevereiro 15, 2013

O CAIS


 

Tudo é silêncio de cimento”
Marcos Konder Reis


O cais está parado no último regresso
espera fumo ao longe, a Ocidente
a linha é inquebrantável, o cimento
está silencioso, a gare sem olhos
a água imóvel espera rostos debruçados
tudo o que há são velhos óleos
reflectidos.

14/2/2012

©

quarta-feira, fevereiro 13, 2013

A ÚLTIMA CARTA DA FRENTE DE BATALHA

 
São as tuas palavras, as últimas
que choram nos meus olhos, brilham
e pesam tanto as lágrimas
esperámos-te, capazes da maior ferocidade
contra a morte
mas não haverá regresso, só silêncio
dentro de nós
A tua vida deslizou, quando entre mãos
entre os joelhos
poisei a tua carta, a última
luz escrita a carvão, que lentamente se extinguiu.

13/2/2013
©
(B.Nemensky, A Última Carta, Pinturas Soviéticas da II Guerra)

domingo, fevereiro 10, 2013

TODOS OS MEUS AMIGOS TOCAM PIANO



Todos os meus amigos tocam piano
adormecem os dedos sobre as teclas
alguns seguram lanças
e sentados diante dos moinhos avaliam
as possibilidades, outros
empalidecem o silêncio com a sua voz
quase todas
as suas palavras repicam a qualquer hora.

5/2/2013

terça-feira, fevereiro 05, 2013

UMA LENDA, poema de Eeva Kilpi

 
Ao entardecer
o Redentor dá uma volta pelos currais,
pelos estábulos, pocilgas, aidos e galinheiros,
quer dar uma vista de olhos ao lugar onde nasceu,
saudar os animais
entre os quais certa vez adormeceu
e teve em cueiros o seu primeiro sonho.
Mas tudo mudou.
Os animais contemplam-no através de grades,
humilhados no seu cativeiro,
com angústia e desespero nos olhos.
Reconhecem-no, gritam-lhe:
Volta a nascer, Redentor,
nasce para nós.
Os homens levaram-te.
Cuidaram-te bem?

Animalia, 1987


© Versão de Amadeu Batista, Aqui

sábado, fevereiro 02, 2013

NAS ÁGUAS DO GOLFO


 Meteu as mãos dentro de si ( diz-se meter a mão na consciência) e não encontrou nada. Até iniciar a viagem às Keys, costumava falar assim:

-A minha linguagem hoje é um misto de gin tónico e añejo gelado.
- Tens de começar uma viagem para lá disso, ou os teus rins no “border line” não aguentam – disseram-lhe. Uma depuração, portanto, uma limpeza.

Ao inciar o trajecto para a última das ilhas, a Key West, iria percorrer uma autêntica linha quase recta sobre as águas. Teria de meter também as mãos dentro dos olhos e retirar todas as imagens partidas e encher-se daquela solidão, que desejava fosse um sinónimo de inocência.

2/2/2013