domingo, agosto 19, 2018

RETRATO DO GRANDE AMOR JEANNE HÉBUTERNE, 1917





Nas mãos de Modigliani

Todas as suas mulheres ascendiam às alturas

Aos seus olhos, para que todas tivessem

Um pescoço tão fino, um pescoço que chegava

Ao céu, as mulheres de Modigliani

Seriam Nefertitis, cresciam

Num instante entre os seios e a cabeça

Todas expostas

Com o olhar azul voltado para dentro de si próprias.


19/08/2018

©

quarta-feira, junho 13, 2018

ESTA VIDA DE CÃO





(img: Angelo Cordeschi, "Waiting for the train") 


Que mais pode um cão fazer senão deitar

No silêncio das linhas os seus olhos, o amor

Reveste-lhe o faro e alguém que espera

Como um irmão maior há-de tomar forma

Enquanto o horizonte não começa

A mover-se, o cão aquece a pedra

Com o coração tranquilo e dorme

Não quer nada em troca pelo seu amor total

A sua língua saberá quem vai descer

Dos ferros ruidosos do comboio.


13/06/2018

© 


quarta-feira, maio 23, 2018

O ALMOÇO DO TROLHA, 1947, JÚLIO POMAR (1926-2018)





O trolha ao regressar a casa leva as paredes

Da casa que está a erguer, nos olhos

Restos de cimento que secam as lágrimas

Regressa a casa numa rua que um rio refresca

Um quarto e um fogão de lume brando

Uma cama onde recolhe as mãos gastas

Com as linhas da vida gastas das arestas

Dos tijolos. Entre o colo da mulher

Um filho nos seus olhos, o trolha come

A parca sopa do descanso, o pão

Misturado no sangue do seu vinho.


22/05/2018
©


sábado, abril 07, 2018

NA IDADE DE PAUL GAUGUIN




Não fossem os setenta e um anos e seria a altura
De fugir para os mares do Sul com a rapariga
Com a pele e os olhos de Taiti, ir colher pássaros
Nas redes dos ramos, entre os arcos das cores
De  flores raras, passar pela frescura
Das mãos molhadas o rosto cada manhã
Subir aos coqueiros, que são parte do silêncio
Verde das praias, e aos recifes como
Vulcões do principiar do mundo
Navegar de canoa e ver a sombra do rosto
No fundo esmeralda das águas transparentes
Mas não. Depois dos setenta anos, todos
Os anos são difíceis e dolorosos
Como disse um salmista.

07/04/2018
©

domingo, março 25, 2018

DUAS CRIANÇAS NA ESTRADA DE CHARTRES





Olhando esta pintura não penso em Soutine

Penso nas crianças como um epítome

Da ternura de mãos dadas, a menina com o verão

Estampado no vestido, nos olhos

Do menino o campo fértil, olhando esta pintura

Quem são estas crianças? Estão perdidas?

Regressam a casa

Ao fim de o mundo inteiro?



22/03/2018
©


quarta-feira, março 07, 2018

MULHER






“Fragile, opulenta donna, matrice del Paradiso”
Alda Merini

Não és assim tão frágil como dizem
Aqueles que espreitam ainda através
Das árvores do Paraíso, depois de tudo
O que se passou és um grão de dor
Nos olhos de Deus, o teu sexo fraco
- ainda dizem, É mais forte do que o nosso
A maravilha é que tu sabes chorar
E são as tuas lágrimas que ainda regam a terra.

07/03/2018
©

domingo, fevereiro 11, 2018

SYLVIA PLATH ON THE BEACH (27/10/1932 - 11/02/1963)





À beira do mar, na areia do meio-dia
Os teus lábios mantêm um sorriso inconsumível
Nem o vento arranca fios de ouro aos teus cabelos
Na pose de quem tem os olhos nas coisas singulares.
Todo o princípio da poesia
Sob a capa transparente do sol ao longo do teu corpo
Preparavas o salto felino da beleza
Que ainda hoje nos devora.

11/02/2018
© 

quarta-feira, janeiro 31, 2018

A VIGÍLIA



(On Watch, Eilif Peterssen, 1889)


Começam primeiro a chegar os destroços
A madeira que fortalecia o casco
E adornava o olhar que pensava
Nos descobrimentos, as velas com o sal
Sem vento agora, depois virá
A saudade nas primeiras ondas
Porque o fundo do mar atrasa os desenlaces
E o luto, brota da água na praia onda após onda
Suavemente a flutuar, o amor do mar há-de
Lançar um corpo e outro corpo
Do fundo do oceano, vindos de um céu feroz
Ainda assim azul. Aqueles que amamos
Podem voltar, para guardarmos os silêncios.

31/01/2018

©

sexta-feira, janeiro 05, 2018

EM TODO O LADO HÁ DEUSES




Li que Paulo ao chegar aos gregos teve um espanto
E irritou-se com o encontro de um deus em todo o lado
Um deus sem nome a quem chamar
Um deus desconhecido, não sabemos
Que tarefas empreendeu, ou que palavras disse
De veludo ou afiadas como facas
Um deus que nem sabe que há humanos
Li algures que Paulo ao chegar aos gregos
Via-os tactear entre esses deuses
Que havia muito tempo ninguém via
Como o rio Ilisos
Sem nomes a não ser de mistério e de silêncio.

05/01/2018

©