A poesia, mais do que outro género literário, consubstanciada no Poema é tanto mais verdadeira quanto maior for a contradição a que abre caminho. A dialética dos contrários faz de qualquer poema um grande poema, porque se não houver tensão, dialogia na pura aplicação dos ensinos de Bakhtin, confronto no poema, não existe verdade poética. Novalis dizia-o, «quanto mais poético mais verdadeiro» porque «a poesia é o autêntico real absoluto». É preciso por vezes refutar sujeito e objecto.
Na instauração, digamos assim, da obra de arte que é o poema, na poiética, a obra-no-acto-de-fazer, o silêncio é a sua matriz tanto quanto a palavra.
A poesia não nasce do ruído
O ruído não é poesia, poderá ser matéria de poema, poiético, como o foi para Álvaro de Campos, no dealbar do modernismo, o barulho da civilização e da maquinaria na Ode Triunfal ( Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! ) ou mesmo as interjeições na Marítima ( Grita tudo! tudo a gritar! Ventos, vagas, barcos, [...]Eh-eh-eh-eh![...] )
Mas a poesia não nasce do ruído, tal como a música, a sua produção, direi de ambas, enquanto poiesis no vero e amplificado sentido aristotélico vem da planície dos silêncios, onde a palavra está no caso da poesia. No dicionário? Pois bem, sim, Drummond de Andrade disse-o, para se buscar no reino das palavras o poema, um vocábulo no seu limbo, no seu estado de dicionário, em conjunto com outros onde reside o poema, só e mudo. Silencioso.
Há do mesmo poeta uns versos exemplares sobre a luta com as palavras, que exprimem o paradigma do silêncio matinal transposto para o acto da escrita:
Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
Elas são muitas, eu pouco, e está estabelecido o diálogo, onde o poeta se dimensiona em minoria, e dessa quadra pelo menos (pois o poema que ela inicia é longo), surge uma certeza, não há vencedores nem vencidos, há apenas luta, no mais puro sentido grego, numa atitude agónica.
O poema parte do silêncio, sem dúvida, mas o silêncio enquanto palavra no poema é o quê? Há em cada poeta lexemas recorrentes, vocábulos que isolados têm o rigor da sua morfologia, são significantes rígidos, quase nunca são anfibologias – para usar uma expressão de Roland Barthes -, todavia em conjunto com outros exibem uma qualidade semântica diversa. São espermatozóide e óvulo, são embrião no poema fecundado.
Eugénio de Andrade, para falar de um dos maiores poetas contemporâneos da nossa língua, tinha um léxico repetitivo de palavras como lugares de beleza, onde a sua poesia passa como um caudal heraclíteo por ter uma água sempre nova no mesmo rio poiético. O desejo de «juntar palavras»: mãos, dedos, olhos, rios, fontes, choupos, juncos, folhas, espigas, fenos, rosas, pólen, frutos, romãs, laranjeiras, aves, cavalos, lume, fogo, luz, verde, carmim, púrpura, brisa, dança, flauta, montes, nuvens, astros, estrelas, luas, charcos, a noite e a madrugada. Um percurso musical sobre as mesmas teclas, escrevi em 2005, num artigo intitulado As mesmas teclas de Eugénio de Andrade.
Há uma exigência por parte das palavras do poeta para figurarem no poema, uma dessas palavras é o silêncio, quanto a mim.
O silêncio no poema não é um contraponto da voz, nem de uma presença, nem sequer é uma ausência. O poema é uma linguagem e como tal comporta tanto o silêncio como a palavra.
Há palavras que no poema produzem silêncio, um silêncio interior, uma negação da voz numa dialética de esquecer/ lembrar, uma dessas palavras é o vocábulo Morte, morte no seu sentido filosófico, metafísico e religioso, lato senso, universal, e restritamente como a morte de alguém.
O silêncio pode introduzir-se num texto e ferir os nossos sentidos, porque o escritor é um dador de sentidos.
Um exemplo da história do século XX é significativo; Jean-Paul Sartre escreveu em 1944 o que a Europa andava a esconder e a silenciar, um estranho artigo sobre a maior catástrofe desse século, A República do Silêncio.
Começa o artigo que “Les Lettres Françaises” publicou em 9/9/44, a afirmar: «Tínhamos perdido todos os nossos direitos e, em primeiro lugar, o de falar», os franceses, mas sobretudo os judeus, deportados, humilhados, exterminados em silêncio. Essa república a que Sartre aludia, era a da Resistência ao nazismo, no silêncio e na noite, a responsabilidade individual de enfrentar a morte sem denunciar, mas era também o outro silêncio, o de «ignorar» o holocausto de milhões de judeus nos campos de extermínio. Porque nesta acepção do termo, o silêncio é o crime de se esconder alguma coisa.
Mas existem no poema aquelas palavras que o já referido Roland Barthes apodou com alguma ironia, numa simbiose de lexemas feliz, como palavras-maná. Segundo esta classificação, tais palavras são aquelas que podem responder a tudo. «Não será forçoso haver sempre, no léxico dum autor, uma palavra cuja significação ardente, multiforme, inatingível e como que sagrada dê a ilusão de se poder com ela responder a tudo?» Barthes dizia que essa palavra estava no texto à deriva, pode fugir a qualquer tópico. Dá como exemplo a palavra «corpo». Ou como o vocábulo «silêncio», teimosamente usado em muitos poemas, que por meu turno dou como paradigma.
Por vezes toma a forma da palavra-cor ( também um conceito criado por aquele filósofo da Linguagem). Nesta perspectiva, há um poema breve de Gerardo Diego, poeta e antologista da Geração de 27 em Espanha, que traduz bem o silêncio através de uma adjectivação poética, com colorido, que torna palpável o sujeito poiético desses brevíssimos versos de poema-imagem:
Habrá un silencio verde
todo hecho de guitarras destrenzadas
La guitarra es un pozo
com viento en vez de agua (poema a Guitarra)
A combinação poiética da palavra com o resto do poema
Uma só palavra pode trazer ao poema a força que se pretende lograr, por vezes, com dois ou três versos, frequentemente salva mesmo o poema do pastiche ou déjà vú. A palavra certa, que corresponde psicologicamente, e semanticamente sobretudo, ao que o poeta quer dizer. Todo o poema se sente nessa palavra, numa palavra média, como tal no exemplo seguinte:
“Ao longe com o vestido como sombra / passava, carregada de mágoa / (...) pendurada / no cântaro passava. // É a mulher samaritana / que vai ao poço de Jacob / buscar o silêncio da água.” (poema A Samaritana)
Ao falar do «silêncio», poderia falar de outros vocábulos (a palavra média, que Barthes inventou na escrita sobre linguística e memórias da escrita que foi originalmente a sua), vocábulos tais como pássaro ou ave, como significante de liberdade, água, às vezes no lugar de vida, outras significando o contrário do fogo. Palavras sempre contidas, seguindo o ensino de T.S.Eliot, segundo o qual «a poesia não é dar rédea solta à emoção».
As palavras no poeta são quase sempre o equivalente verbal ao que ele vê, ao que ele ouve, ou à sua personalidade; se for um poeta metafísico, claro que as palavras equivalem ao seu estado de espírito e sentimento também. Materializações que o poeta gostaria de erguer, um corpo do pó.«Eu acredito/ Embora não as tenha encontrado, que possa haver/ Palavras que são coisas» - escrevia Byron no seu Childe Harold.
O silêncio nas culturas greco-romanas, nas semitas, nas ptolomaicas, foi também objecto, foi coisa. Uma criança, um dedo sobre a boca simbolicamente, uma estátua ptolomaica representando Harpócrates quando criança, mistura de homem e de deus Hórus.
O silêncio, na Física, corresponde a O decibéis, corresponde a sinal nenhum. Com a expressão «um silêncio eloquente», entra no domínio dos tropos de linguagem, como um oxímoro; pontua uma grande verdade silenciosamente, acerca de qualquer coisa.
Ao falar do silêncio não tenho a certeza de ter atingido um cerne ou de ter sido percebido. Talvez porque pertença a um projecto pessoal. Talvez o meu vocábulo médio de eleição seja por isso «silêncio», talvez esta palavra reúna toda a virtualidade da poiética que trabalho, um pouco ao arrepio da aristotélica mimesis, porque a imitação é a cópia do falado, e o silêncio é o nada virginal de onde saem as coisas que conhecemos da Criação. Criar a partir do silêncio foi atitude, um gesto, uma prerrogativa de Deus, o poeta é um «pequeno-deus», ainda hoje na expressão quase secular de Vicente Huidobro, poeta chileno que correspondeu ao modernismo com o criacionismo na época da Geração espanhola del 27.
Talvez seja uma palavra recorrente que dá caminho a outros e diversos conceitos, que dá a mão a outras palavras que nela estão contidas. O silêncio a partir da mitologia que acabou por dar significantes à língua helénica é prefigurado por um deus com o dedo na boca - já o referi -, assinalando com o gesto o calar. O silêncio é persuadido por esse inefável gesto. Ovídio falava daquele «que reprime a voz e com o gesto os silêncios persuade.» O silêncio, hiperbolizando Álvaro de Campos, é no poema «ser nada», «ser uma figura de romance», ou a representação grega do deus-recém nascido, ou a gráfica representação do dedo sobre a boca, mantendo o sigilo. O silêncio no poema é tudo.
1 comentário:
Não consegui colocar este comentário no teu blog (ensaio):
"Texto fantástico, excelente, mas que não admira quando vemos quem o assina, um grande senhor das Letras portuguesas.
Abraço, João.
Brissos Lino"
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