quarta-feira, maio 31, 2006

Cheia

Katrina, Fonte: New York Times


Cheia

O rio leva olhos mudos
postos nas margens
e no impossível

apelam aos ramos
agora tristes

as mãos
turvas não agarram
as águas

o remoinho vai
ao fundo da terra
traz troncos

limpos, frágeis
pesos de um pesadelo

cabeças tentam
manter-se atentas
a água é tumulto

sobre velhas
pedras.

terça-feira, maio 30, 2006

Imobiliárias

Liquidação

A casa foi vendida com tôdas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em via de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis
por vinte, vinte contos.

(Carlos Drummond de Andrade)

domingo, maio 28, 2006

Poema de Rafael Alberti (1902-1999)

José Monteiro, Acrílico, 1995
















Balada da Bicicleta com Asas

Aos 50 anos, hoje, tenho uma bicicleta.
Muitos têm um iate
e muitos mais um automóvel
e há muitos que têm já um avião.
Mas eu,
aos meus 50 anos exactos, só tenho uma bicicleta.

Tenho escrito e publicado inúmeros versos.
Quase todos falam do mar
e também dos bosques, dos anjos e das planícies.
Tenho cantado as guerras desculpadas,
a paz e as revoluções.
Agora não sou mais do que exilado.
E a milhares de quilómetros do meu belo país,
com um cachimbo curvado entre os lábios,
um caderninho de folhas brancas e um lápis
corro na minha bicicleta por bosques urbanos,
pelos caminhos ruidosos e asfaltadas ruas
e detenho-me sempre junto a um rio
a ver como se deita a tarde e com a noite
se perdem na água as primeiras estrelas.

(Tradução: J.T.Parreira )


terça-feira, maio 23, 2006

O Pássaro Azul

There’s a bluebird in my heart that
wants to get out

: Charles Bukowsky


O pássaro azul está
dentro do meu coração
voa sobre veias
que confunde
com um delta

não o posso deixar
nunca só, é muito
vivo para perceber
que o silêncio
ao bater, é a morte

dentro do meu coração
às vezes dou-lhe
bastante trabalho, debate-se
com o veludo
de sonhos enganosos

esse pássaro azul que está
dentro do meu coração
algumas vezes espreita
no globo ocular
para se fazer entender

outras vezes usa
a música suave
que faz as minhas mãos
dançar, às vezes
num buraco negro

é onde vou dar com ele
no espaço
triste a
respirar, dificilmente
o azul.

18-5-2006

Opacidades


Opacidades” – Exposição
Alexandra Santos (que assina Mito) apresenta “Opacidades”, pintura acrílica sobre tela e técnica mista, para ver no Caixilho – Espaço de Arte, em Ílhavo (na estrada 109 entre Vagos e a Vista Alegre), a partir de 27 de Maio.
A exposição terá inauguração pelas 21.30h e assinalará o aparecimento desta artista que desde cedo começou a ocupar os seus tempos livres para dar os primeiros passos no mundo da arte.
Tendo iniciado com cadeiras de baloiço, feitas em molas de madeira e com bonecos trabalhados em pedras descobertas à beira mar, Alexandra Santos foi alimentando um espírito criador e transformador que se foi acentuando, fazendo emergir da pintura em tela a sua paixão pela arte.
in «O Ilhavense», de 20/5/2006

segunda-feira, maio 22, 2006

O Caos e as Colunas

«A Criação» Litografia de Chagall, série A Bíblia, 1960


A terra, porém, era sem forma e vazia
Génesis, I, 2


O caos era jovem, ainda
não havia
cabelos brancos nos cometas
o colo da noite, as mãos
da noite
eram a única nudez

O verde não trocava com o azul
nuances de mar e céu
não havia nada nem cor
de terra, ninguém
como nós, um véu
distendia a face do abismo


Colunas gregas seriam um sonho
de lucidez, uma dádiva de Deus
para a tortuosidade
do homem.

sábado, maio 20, 2006

Luandino Vieira, Prémio Camões 2006

Canção para Luanda
(excerto)

A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nós:
-Luanda onde está?

Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos

-Xê
mana Rosa peixeira
responde?

-Mano
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!

«ola almoço, ola almoçoée
matona calapau
ji ferrera ji ferrerééé»

-E você
mana Maria quintandeira
vendendo maboque
os seios-maboque
gritando
saltando
os pés percorrendo
caminhos vermelhos
de todos os dias?
«maboque m’boquinha boa
dóce dócinha».

(José Luandino Vieira)

quinta-feira, maio 18, 2006

sábado, maio 13, 2006

O beijo percorre as esquinas da face

O beijo percorre as esquinas da face
não reconhece aparências
como o sol, é cego
exaurindo as flores
percorre arestas
e ângulos
procura o vulcão
por vezes nos lábios
prefere ao magma
a cinza de um olhar
o trémulo vale
das pálpebras
onde o olho se debate
o beijo cúmplice
das mãos
as mãos que suportam
a harmonia das faces.

sexta-feira, maio 12, 2006

Uma Identidade: Álvaro de Campos e Mário de Andrade


No meio do caudal que jorra da torrente sensacionista de Álvaro de Campos, no início de um pequeno verso (o 41º) do poema "A Passagem das Horas", surge a revelação e o estímulo para um entendimento de Fernando Pessoa, o seu retrato psicológico em que se consubstancia a sua heteronímia.
"Multipliquei-me para me sentir ".
Em outro momento de balanço da sua vida, mais prosaico, o Poeta afirmou, a propósito do seu refúgio nos filósofos gregos e alemães, no ambiente austeramente cultural britânico e do seu consequente bilinguismo, que se "libertou para dentro".
Exceptuadas outras causas psicológicas, do foro da auto-psicografia pessoana, o seu esoterismo, o seu gosto pelas ciências ocultas, esta libertação para o seu interior, também esteve na base da criação dos heterónimos.
Outros poetas de língua portuguesa e igualmente de "Eu atormentado", elaboraram um discurso poético escondido por detrás da multiplicidade de máscaras, ouvindo vozes múltiplas, afinando cores arlequinais, que se resolvem em um processo poético curioso sem que para tanto tenham feito nascer heterónimos, como "teve" que acontecer com o autor de "Mensagem".
Mas a identificação com o Poeta brasileiro Mário de Andrade consiste na leitura de alguns versos do autor de "Pauliceia Desvairada", que decalcam um vocabulário e um estilo sensacionista.
Por exemplo, MA em "Louvação da Tarde", cujo processo poético liga um sentimento do Eu integrado na paisagem, escreve:
"O doce respirar do forde se une / Aos gritos ponteagudos das graúnas".
Por seu lado, desta margem do Atlântico, acima do Cruzeiro do Sul, Álvaro de Campos ao descrever também uma viagem ( hipotética, fingida) a Sintra, com o mesmo sentimento de evasão integrador na paisagem, escreveu:
"Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra / Ao luar e ao sonho, na estrada deserta "
Mas à parte estes poemas modernistas de glorificação da maquinaria emergente na primeira década do Século XX, é, sobretudo, um poema escrito em 1929 por Mário de Andrade que nos confere a ideia da sua personalidade desdobrada. Trata-se do poema " Eu sou trezentos…".
Versos de desdobramento, considerados autobiográficos, em que MA se torna muitos, eles aludem à multiplicação das sensações, relacionam sentimentos perante a paisagem com estados afectivos, marcam pela referência uma época de sensacionismo modernista.
O poema que citamos de Mário de Andrade terá obviamente outras leituras, não deixando de ser porém um paradigma da multiplicação do Eu.
Esses versos expõem, com efeito, o autor do romance "Macunaíma" através de uma linguagem muito pessoal, de uma dicção folclórica, o qual vai falando da dispersão do Eu, utilizando a nosso ver o caminho dos segundos sentidos de que a etnografia pode dispor.
Vulgarizado em antologias do autor como poema pertencente à classe da poesia biográfica, "Eu sou trezentos…" traduz a variedade e a multiplicação, e remata uma análise psicológica que foi bem sublinhada pela releitura que fez essa enorme poeta Cecília Meireles, que classificou o poema como a imagem da abundância.
Mas a chave do poema de Mário de Andrade, reside na expressão da promessa do poeta, que apesar da sua dispersão em "trezentos ou trezentos e cinquenta", não obstante este número aleatório que vale pela declaração de variedade, garante que um dia se encontrará consigo mesmo.
"Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta… Mas um dia, afinal, eu toparei comigo".
(João Tomaz Parreira)

quarta-feira, maio 10, 2006

O Verso

O Verso

"E agora ele estava ali, ainda, no organismo"
G.M.T

Não adianta encerrar
o livro, o verso
já é artéria

onde martela
o sangue,
que vai

da cabeça
ao coração
e vice-versa,

e raia
nos olhos como o halo
da manhã.

10-5-2006

segunda-feira, maio 08, 2006

Seamus Heaney, outra tradução

A ilha que desaparece

Quando nós presumíamos ficar para sempre
entre suas colinas azuis e aquele litoral sem areia
onde passamos noites desesperadas em oração e vigília,

quando havíamos recolhido a madeira flutuante, feito um lar
e pendurado nosso caldeirão como um firmamento,
a ilha quebrou-se debaixo de nós como uma onda.

A terra que nos sustentava pareceu firme
apenas quando in extremis a abraçávamos.
Creio que tudo o que ocorreu ali foi visão.

(Tradução: J.T.Parreira)

The disappearing island

Once we presumed to found ourselves for good
Between its blue hills and those sandless shores
Where we spent our desperate night in prayer and vigil,

Once we had gathered driftwood, made a hearth
And hung our cauldron like a firmament,
The island broke beneath us like a wave.

The land sustaining us seemed to hold firm
Only when we embraced it in extremis
All I believe that happened there was vision.

(Seamus Heaney)

sexta-feira, maio 05, 2006

Anne Sexton: Depois de Auschwitz

Anne Sexton ( 1928-1974), tal como Robert Lowell ou Sylvia Plath, integrou o grupo dos poetas chamados «confessionais». A poeta, que aos 46 anos se suicidou, oferece ao leitor na sua poesia a visão íntima da angústia, que parece ter caracterizado toda a sua vida de exuberância: de modelo a prémio Pulitzer, em 1967, pelo livro Live or Die. O poema que publicamos no original, e agora na tradução possível, não sendo uma experiência directa que tenha vivido, está na linha do seu inconformismo, daí não ser totalmente estranho o poema After Auschwitz, que enfileira com a observação histórica de Teodoro Adorno, que afirmou ser impossível haver poesia depois de Auschwitz.


Depois de Auschwitz

A ira,
tão preta como um gancho,
atinge-me.
Cada dia,
cada Nazi
tomava, às 8:00, um bebé
e salteava-o para o pequeno-almoço
na sua frigideira.

E a morte contempla com olhar casual
e tira o lixo das suas unhas.

O homem é perverso,
digo em voz alta.
O homem é uma flor
que deve ser queimada,
digo em voz alta.
O homem
é um pássaro cheio de lama,
digo em voz alta.

E a morte contempla com olhar casual
e coça o ânus.

O homem com seus pequenos dedos dos pés rosados,
com seus dedos milagreiros
não é um templo
mas um anexo,
digo em voz alta.
Que o homem nunca mais levante sua chávena de chá.
Que nunca mais escreva um livro.
Nunca mais calce seu sapato.
Nem erga mais os olhos
na noite macia de Julho.
Nunca.Nunca.Nunca.Nunca.Nunca.
Digo essas coisas em voz alta.
Peço ao Senhor que não ouça.

(Tradução: J.T.Parreira)

quarta-feira, maio 03, 2006

Poema:

Precisão Artística

Fiz um curso
de águas para as palavras
descerem
até ao mar divino
onde Circe a Temida
espera
marítimos incautos
madeiras exóticas
e barcos frescos
que separam o mar como flechas
Desviei das sombras
e das pedras
das duras palavras
todos os meus versos
Do feltro cor de cinza
dos dias salvei
alguns, quase todos
os vesti de tule
agora estão nus.

Anne Sexton: After Auschwitz

Anger,
as black as a hook,
overtakes me.
Each day,
each Nazi
took, at 8:00 A.M., a baby
and sauteed him for breakfast
in his frying pan.

And death looks on with a casual eye
and picks at the dirt under his fingernail.

Man is evil,
I say aloud.
Man is a flower
that should be burnt,
I say aloud.
Man
is a bird full of mud,
I say aloud.

And death looks on with a casual eye
and scratches his anus.

Man with his small pink toes,
with his miraculous fingers
is not a temple
but an outhouse,
I say aloud.
Let man never again raise his teacup.
Let man never again write a book.
Let man never again put on his shoe.
Let man never again raise his eyes,
on a soft July night.
Never. Never. Never. Never. Never.
I say those things aloud.
I beg the Lord not to hear.