domingo, janeiro 28, 2007

A Guitarra

Começa o choro
da guitarra.
Partem-se os cristais
da madrugada.
Começa o choro
da guitarra.
É inútil calá-la.
É impossível
calá-la.
Chora o mesmo tom
como o choro da água,
como o choro do vento
sobre as noites brancas.(*)
É impossível
calá-la.
Chora por coisas
longínquas.
Areia do Sul quente
que pede camélias brancas.
Chora a flecha sem alvo,
a tarde sem manhã,
e o primeiro pássaro morto
sobre os ramos.
Ó, guitarra!
Coração malferido
por cinco espadas.

(Tradução: J.T.Parreira)

(*) Em 1946, Eugénio de Andrade traduziu «la nevada», em Antologia Poética, como «o nevão».
Já em 1968, em Trinta e Seis poemas e uma Aleluia Erótica, o mesmo poeta usou o termo «a nevada».
Atendendo à poeticidade da expresão «noites brancas» usamos aqui a mesma, talvez como um metonímia para falar de queda de neve, e não no sentido do romance de Dostoievski (Noites Brancas, o dia contínuo.)

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Cidade Transparente

No teatro das casas
em Amsterdão, à noite
a vida está aberta
à noite passeamos
no meio de mesas de jantar
salas, quartos de dormir
tudo visível, tudo vida
sem cortinas, uma janela
reflecte a luz
nos vidros de água
dos canais.
Há uma linha num livro
que partilha a poesia
um Van Gogh
que o sol da janela amarelou
todos os dias a única
coisa nova são as nuvens
que mudam de lugar.

21-1-2007

terça-feira, janeiro 23, 2007

Dizer sem dizer: os sons na poesia de Vicente Huidobro

Um prefácio e sete poemas, designados por cantos, constituem o livro torrencial de Vicente Huidobro (1893-1948), poeta chileno, cuja linguagem se desloca do centro da poesia modernista, no conceito da América hispânica da primeira década do século XX, para a busca do vocábulo puramente fonético, aparentemente sem poesia, mas exibindo uma estrutura onomatopeica como significante apenas do próprio som.
Esse livro em que a torrente se deslocaliza da palavra para o puro som é Altazor, uma obra considerada épica. Ela consiste na realização, levada a cabo pelo poeta, do seu credo artístico, da criação e criação literária dentro do próprio poema, do desmontar da linguagem gongorizante e simbolista, do provocar o cataclismo en la gramática, do louvor à individualização da mulher como entidade geradora, das combinações vocabulares curiosas, as palavras circulares, como por exemplo eterfinifrete (Canto IV, pág.66) ou ainda novas formas de dizer " al horizonte en la montaña" assim: al horitaña de la montazonte (pág. 60).
As experiências que esse poeta de Santiago do Chile, amigo de Lorca e influenciador de Gerardo Diego, produz na sua poesia não estarão desligadas da sua avidez literária pelas novidades.
A Vanguarda estética, na arte poética, era o seu terreno e Apollinaire, para nos situarmos só na literatura, foi uma das suas figuras tutelares.
Mas toda a Vanguarda artística da Europa contribuiu para a sua criatividade apaixonada, desde Picasso a Stravinsky.
Se dos pincéis do primeiro nasciam deformidades criadoras da pura ordem pictórica e do segundo uma música cujo algum caos formulava já a beleza harmónica do Pássaro de Fogo , da poética de Huidobro surgia a poesia que não se limitava a interpretar, mas a elaborar a própria criação, que não se circunscrevia apenas aos sentidos mas aos sons vocabulares.
São célebres e aforísticos os dois versos, da sua Arte Poética, em que questiona os poetas que se limitavam a cantar a rosa: Por qué cantáis la rosa, oh Poetas, Hacedla florecer en el poema.
Huidobro reclamava a sua quota parte de pequena divindade, que não só naquele tempo, mas sempre e desde os gregos se costumava atribuir aos poetas ( na poética hebraica e bíblica já não era obviamente assim).
El Poeta es un pequeño Dios , era o desafio final daquele poema de Huidobro.
Mas este poema possui um sentido, não é hermético, a sua gramática é habitável, podemos conviver com ela. É uma arte poética com sentidos que transportam de um lugar a outro, indica todo um programa que a história da literatura Latino Americana classifica como Criacionismo.
Ao contrário é o livro Altazor . Sendo também uma viagem, dir-se-ia que é intergalática. A personagem cai ou vem de uma queda auto-promovida desde um ponto do universo.
O livro apoia-se sobre um mito básico: Altazor é a encarnação do poeta descendo às profundidades, tal qual Dante, Enéas ou Orfeu, com a ajuda de um páraquedas, que a crítica usualmente afirma ser a poesia.
Esta queda, ou melhor descida controlada do poeta, é também um acto de revolta, e esta começa em Altazor com uma linguagem carregada de conteúdos , de informação, de ideologia. Nesta obra de capital importância para a poesia modernista hispânica, a dicotomia de Saussure contribui para a compreensão da sua linguagem: contém o elemento social que é a língua e o elemento individual que é a palavra.
É, porém, no último canto do poema que tudo o que concerne à linguagem - língua e palavra - se transmuta em puro som, apesar de alguns vocábulos que podem ser pronunciados, mas distituídos de qualquer sentido. Criação do próprio som, a emanar do «poema» do criacionista Huidobro? Na mesma direcção programática em que os poetas deveriam, sim, criar a rosa e não cantá-la?
O canto VII é, em todo o caso, o da incompreensibilidade, da fonética pura sem sentidos, da onomatopeica propositadamente identificável. Segundo Octávio Paz, o "dizer sem dizer", sem nenhuma correspondência semântica, no fundo, uma metalinguagem.

Ai aia aiaia ia aia ui Tralalí Lali lalá Aruaru urulario Lalilá Rimbibolam lam lam Uiaya zollonario lalilá Monlutrella monluztrella lalolú Montresol y mandotrina Ai ai Montesur en lasurido Montesol Lusponsedo solinario Aururaro ulisamento lalilá Ylarca murllonía Hormajauma marijauda Mitradente Mitrapausa

sábado, janeiro 20, 2007

Passagem para o efémero

Nalgum lugar onde nunca esteve, ninguém
relembrará quem, o que, onde
e quando, como
as coisas começaram
e porquê o papel durou como invólucro
de rosas.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Um Outro Adeus Português

Blockquote e como um adolescente tropeço de ternura
por ti
Alexandre O Neill


Dentro dos meus olhos uma outra
forma de olhar
suporta a tua dor,

amparo-te na escada fluvial
que te traz ao dia,
no cais onde acostam
tuas sonâmbulas palavras

mais uma puríssima manhã
que deverias tratar
com o leite corporal
róseo da perpétua aurora

não podemos ficar nesta curva
entre sonhos de uma rosa enorme
que deixa o lirismo
a contas, indeciso com o mais
lancinante espinho.

6-1-2007

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Poesia: Intertextualidades: Basil Bunting

O OUTONO

Quando amolece o boquim o alento do que toca o timbre torna-se claro.
É a hora de examinar como Domenico Scarlatti
comprimiu tanta música em tão poucos compassos
sem voltas intrincadas ou cadências em excesso;
nunca uma vaidade ou um intuito; e as estrelas e os lagos
fazem eco e o bosque tamborila ritmos,
os cumes nevados elevam-se com a luz da lua
e do crepúsculo e o sol desponta familiar.

(Tradução do espanhol: JTP)

sexta-feira, janeiro 12, 2007

O Condutor

Tosse
como o último ruído
da ligação ao mundo

Com seus gestos de pescador
à linha
enche os braços de ar

fixa o silêncio
como se esperasse de uma fonte
a cristalina música da água

Não vemos, mas pensa em cada
um dos instrumentos
e estende os braços

Depois os olhos e ouvidos
seguem-no, as mãos
do tamanho da infinita mão

escutam-se, sonoras
vão desvelando
a música.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Charles Olson

"a poem is energy transferred from where the poet got it . . . by way of the poem itself to, all the way over to, the reader . . ."-

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Num campo de concentração: e.e.cummings


um riso sem um
rosto (um olhar
sem um eu)
cuida

do (não to
que) ou
desaparec
erá semru

ído (na doce
terra)&
ninguém
(inclusive nós

mesmos)
relembrará
(por uma fra

ção de
um mo
mento) onde
o que como

quando
por que qual
quem
(ou qualquer coisa)

(Tradução de Augusto de Campos)

terça-feira, janeiro 09, 2007

Na Tabacaria

Nunca era nada. Nunca
seria nada, disse, não podia
querer ser nada.
E o sonho, que era de todos
os sonhadores do mundo,
assomava as janelas do seu quarto,
do quarto de um dos milhões do mundo
que ninguém saberia quem era.
Mas, logo o poema iniciado
cruzaria as ruas, entraria nos hospícios
onde poucos sabem que vão morrer,
nas mansardas onde o sonho
se sonha a si próprio,
entraria no mundo,
chamaria a atenção, como por sinal
divino, do Dono da Tabacaria
quando se acerca da porta e permanece.
Entraria
até no universo para um último adeus:
Adeus, ò Esteves.
E o poema sorriria.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Tradução: John Berryman

Dream Song 105

Como um garoto acreditei na democracia: eu
não via outra alternativa- ensinando em Princeton eu
apliquei-a
numa sondagem para um longo romance: por um voto-
E Tudo o Vento Levou, votaram todos: rangi um «não»
e sentámo-nos com Guerra e Paz.

Como um homem acreditei na democracia( ninguém
sabe sempre tudo) : num dia de folga
o meu assistente, chamado James Dow,
& Eu estivemos tagarelando, em desacordo,
eu perguntei curioso «Qual é a sua verdadeira política?»
«Oh, eu sou monárquico»

Finalizando a sua dissertação, em Ciência Política.
Resigno-me. O desprezo universal pelo Sr.Nixon,
de quem nunca gostei mas o qual
vigilante & enérgico serviu-nos anos a fio debaixo de segredos
desde a invasão da dinastia K. Deixem-nos ter um Rei
talvez, antes de alguns votos estúpidos.

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Intertextualidades: para que servem os pássaros

Olhos no Céu

Olhai as aves do céu, voam
de qualquer lado
habitam qualquer lugar
no azul ou no verde
menos nos nossos olhos

Olhai depressa as aves no céu
cada pássaro se dissipa
na sua partida
e a velocidade dos olhos
perde-se no voo violado

Olhai nas aves o céu
espaço permeável
ao vento, à alta seta
do sonho

(J.T.Parreira)



Para que serve o pássaro?

Mas para que serve o pássaro?
Nós o contemplamos inerte.
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas.
De que serve o pássaro se
desnaturado o possuímos?

O que era vôo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico

O que era pássaro e é
o objeto: jogo
de uma inocência que
o contempla e revive
— criança que tateia
no pássaro um
esquema de distâncias —

mas para que serve o pássaro?
O pássaro não serve. Arrítmicas
brandas asas repousam.

(Orides Fontela, 1940-1998)

terça-feira, janeiro 02, 2007

Outro dia no Café A Brasileira do Chiado

No Café A Brasileira do Chiado
sentam-se o plural
Pessoa, Fernando com risos vacilantes
nos seus lábios
Eles esperam as palavras
para prestar contas pela quebra
do mármore do silêncio
com o ruído das máquinas
e os carros eléctricos
e o respirar na alma.

2/1/2007