sexta-feira, outubro 30, 2009

Que luz é a luz se Ofélia


Detalhe de Millais, 1852


Que luz é a luz
se Ofélia não a pode contemplar
que riso é o riso
se Ofélia não pode ver a sua fonte
que sol é o sol
se Ofélia não lhe pode dar o rosto
a descoberto.

terça-feira, outubro 27, 2009

África

Sem sapatos, os pés na terra
descalça, sem camisa
sem a negrura
dos problemas da alma

Com o coração forte
como a corrida do antílope
com uma casa de vento
capim e barro

Sentada à porta fumando
a fogueira foge
para o rotundo silêncio
no seu mover lento

Aos seus pés insectos mortos
descem até ser pó
e a atmosfera cheira
mudando de lugar

e nas tuas mãos
a terra gretada, os teus dedos
adormecem os cabelos
dos teus filhos.

24/10/2009
Publicado como inédito no blog A Ovelha Perdida

sábado, outubro 24, 2009

Onde está a criança

Onde está a criança
que ontem se sentava
sobre a mesa, em porcelana
um galgo salta
no lento espaço da sala

Onde estão as mãos
para as pequenas coisas
as mãos ainda virgens

Onde está o espanto
que escuta no olhar
o tumulto
das futuras águas

E a claridade da sala
é hoje uma luz deixada
por um pássaro
uma seta, abrindo caminhos
na memória

Sentada ainda sobre a mesa
Oh criança serena
sossega a tua língua inquieta.

20/10/2009

quinta-feira, outubro 22, 2009

Os Poetas

“El poeta lírico está sentado cómodamente en casa
El poeta épico recorre las colinas.”
(Peter Handke)


O poeta lírico está comodamente
sentado em casa e na metáfora
constrói o vento da cortina
inquieta, o poeta olha a janela
Enquanto isso
o poeta épico percorre as colinas
de Atenas, molha os pés no fogo
que as sereias ateiam
no Egeu.

Publicado originalmente em A Ovelha Perdida

segunda-feira, outubro 19, 2009

Saramago, amargoso

Saramago, amargoso
Grita a todos ser ateu
E proclama ser perigoso
O cristão como o judeu

Torna-se deus a si mesmo
Do alto do Nobel ganho
Dispara asneiras a esmo
Mas sempre a franzir o cenho

Só não entendo um enigma
Digo eu com os meus botões
Enquanto o ouço falar

Porque raio de estigma
Trauma ou complicações
Ele luta contra o ar?

19/10/09

(Manuel Sadino)

sexta-feira, outubro 16, 2009

Penélope Destroçada


Da série de poemas que o poeta Brissos Lino, meu amigo e colaborador, está a escrever perante a sua leitura da Odisseia, de Homero.


“A mim deu o Olímpio mais dores do que a qualquer das mulheres.”
(Homero, Odisseia, Canto IV)



Sem fome e já sem lágrimas
Penélope adormeceu
e junto às portas dos sonhos
resistiu a acalmar
as nuvens negras
que persistiam
suspensas
sobre o coração e o espírito
em forma de pranto

Telémaco se foi
como palavras apetrechadas de asas
o filho amado se foi às escondidas
a saber novas do pai
desaparecido algures no mar
nunca antes vindimado

o mancebo insensato
desconhece tantas coisas
e também que os pretendentes da mãe
lhe congeminam a morte
entre dois festins.
14/10/09

(Brissos Lino)

quarta-feira, outubro 14, 2009

José Emilio Pacheco, poeta do México


Há uma voz que emociona os jovens mexicanos. É a de um homem de 70 anos que conheceu Octavio Paz, Luis Cernuda, Vicente Aleixandre, Jorge Luis Borges, etc., e não quis conhecer pessoalmente Pablo Neruda - segundo disse numa entrevista.
Há um poema de 1967 que emociona todas as gerações de mexicanos. Chama-se Alta Traición e está no El Pais, no suplemento Babelia, e diz assim:


No amo mi patria.
Su fulgor abstracto
es inasible.
Pero (aunque suene mal)
daría la vida
por diez lugares suyos,
cierta gente,
puertos, bosques de pinos, fortalezas,
una ciudad deshecha, gris, monstruosa,
varias figuras de su historia, montañas
-y tres o cuatro ríos.


Não amo minha pátria.
Seu fulgor abstracto
é inalcançável.
Todavia (ainda que mal soe)
daria a vida
por dez das suas vilas,
certa gente,
portos, pinhais e fortalezas,
uma cidade desfeita, cinzenta, monstruosa,
várias figuras da sua história, montanhas
-e três ou quatro rios.

(Trad.J.T.Parreira)

Trânsitos, Virna Teixeira


Depois do dactiloescrito (em Word, claro), que a poeta me enviou, eis o livro: «Para o João Tomaz Parreira, estes poemas em Trânsito. Um abraço, Virna».

terça-feira, outubro 13, 2009

o Último Inverno de Sylvia Plath

Após longo assédio
do inverno, ajustou contas com a lua
arrumou a perfeição
dos símbolos nos poemas, do corpo
e das toalhas
molhadas que vedaram a porta e as janelas

O quarto das crianças seria uma redoma
conservando a infância

Descansada quanto às lides da casa
soçobrava
a cabeça no interior do forno
com o gás ligado
compôs a fria lâmina da morte.

9/10/2009

Publicado originalmente em A Ovelha Perdida

segunda-feira, outubro 12, 2009

A propósito da vala comum de Alfacar

A polémica: exumar ou não os restos mortais de Federico Garcia Lorca

«Hola Joâo :
En el tema que tocan de Lorca (mi padre lo conocio), se cuenta en Granada que el poeta no está enterrado en el lugar que se dice. Que días despues de su muerte, mediante un dinero pagado por su padre, fué trasladado a la huerta se San Vicente, residencia de la familia en verano, hoy parque publico.
Motivo por el cual, la familia se opone a la exumación. Parece que esto es cierto.
De cualquier manera lo importante es su obra.
Hasta pronto»
(Yola Corrochano, Granada)

sexta-feira, outubro 09, 2009

quinta-feira, outubro 08, 2009

A Canção de Marchar: Herta Müller

Sempre que o domingo, conforme dizia papai, chegava ao céu, papai encontrava esses estilhaços na sopa. Papai, na condição de herói alemão da guerra, tinha três deles no pulmão. Eles se mudavam de um lugar a outro. Papai tinha medo de que um dia se mudassem para o coração. Aí será o fim, disse papai.

Um dia, os estilhaços chegaram ao rosto de papai, e papai não fez a barba durante vários dias.
Quando eu olhava, papai punha a colher sobre os estilhaços ou enterrava-os debaixo de um bolinho de batata ou de um pedaço de legume. Na hora de lavar a louça, os estilhaços tiniam em seu prato.

Um dia nós estávamos visitando a irmã de papai e ela serviu uma sopa rala. Papai mais uma vez encontrou os estilhaços em seu prato. E como não pôde enterrá-los debaixo de um bolinho de batata ou de um pedaço de legume, papai engoliu os estilhaços. Todos haviam acabado com a sopa de seus pratos e elogiado os dotes culinários de minha tia.

Depois da refeição as mulheres dançaram umas com as outras. Minha mãe, pequena e seca, dançava, suando, com minha tia gorda. A irmã de meu pai ria, e suas bochechas tremiam o tempo todo.

Os homens haviam ficado à mesa e cantavam canções de guerra alemãs. Quando as mulheres passavam por eles dançando, os homens davam palmadas em suas bundas grossas e saltitantes. as mulheres riam alto, davam passos de dança ainda mais saltitantes e movimentavam os braços para cima e para baixo. Papai seguia o compasso, batendo com sua mão imensa sobre o tampo da mesa: "E minha noiva, a Loiva, ela é igualzinha a mim".

Quando estava anoitecendo, papai se levantou e cantou, em pé e com os lábios tremebundos e os olhos vermelhos, a canção de marchar. Minhas tias balançavam as pequenas cabeças e tinham os olhos úmidos.
Na terceira estrofe papai se curvou de dor.

Desde aquele dia nós íamos todos os anos visitar a irmã de papai e nos era servida uma sopa rala. Depois da refeição as mulheres dançavam umas com as outras. Minha mãe ficava sempre sentada, pálida e passando frio, a um canto da sala. Seus olhos ficavam molhados e ela voltava a puxar de volta à testa as lágrimas tépidas que insistiam em forçar passagem através de seu nariz. Ela embolava seu lenço na mão congelada, soluçava, dizendo que meu pai era inesquecível, que ele continuava sendo o mesmo para ela. Também a irmã de meu pai afundava em uma cadeira e chorava longas frases. E suas bochechas tremiam nas palavras afogadas.

Os homens que haviam ficado à mesa cantavam canções de guerra. Sempre, quando anoitecia, eles se levantavam. Ficavam parados em volta da mesa. De seus olhos vermelhos, um brilho profundamente vermelho se deitva sobre a toalha de mesa, entre suas grandes mãos. Eles olhavam paralisados dentro desse brilho vermelho e cantavam, com lábios tremebundos, a canção de marchar.

Todos os anos um deles se curvava de dor na terceira estrofe e morria.
No ano passado nós mais uma vez estávamos visitando a irmã de papai e nos foi servida uma sopa rala. Depois da refeição as mulheres se levantaram e a mesa estava vazia. Cada uma das tias sentou-se, pálida e passando frio, a um canto da sala e chorou, pressionando o lenço sobre as lágrimas tépidas, sobre o rosto, e soluçou dizendo que seu marido era inesquecível e continuava sendo o mesmo para ela.

Quando estava anoitecendo as mulheres se levantaram e puseram-se em volta da mesa. E através do vão da porta do armário semifechada, soou a fita com a canção de marchar. Minhas tias ficaram paradas, imóveis e mudas. Na segunda estrofe minha mãe pequena e seca cantarolou junto, sem abrir a boca. Na comissura de seus lábios movia-se uma sombra fraca. Quando chegaram à terceira estrofe, a irmã gorda de papai cantarolou junto, de boca fechada. A canção tremeu em suas bochechas e sua testa estava branca. Na quarta estrofe a minha tia mais gorda cantarolou junto. Ela respirava profundamente em meio à canção e sobre seus seios os botões em suas molduras finas e douradas brilhava como se fossem medalhas.

Quando a canção chegou ao fim, a irmã de papai estava diante do armário. Suas mãos estavam pesadas da luz do crepúsculo, e com as pontas mudas dos dedos ela fechou a porta do armário.
O cantarolar ainda pairou por longo tempo no ar da sala. O cantarolar já estava monótono e cansado. E ele era ilimitado no crepúsculo.


Via Zero Hora

Herta Müller: Nobel da Literatura 2009

A poeta alemã/romena HERTA MÜLLER:


«Pela concentração da sua poesia e a franqueza da sua prosa, que retratam a paisagem dos espoliados.»

Herta Muller, romancista, poeta e ensaísta, cujo trabalho incidiu essencialmente sobre a ditadura de Ceaucescu, os romenos e os exílios.
Nasceu em 1953.

quarta-feira, outubro 07, 2009

A vala comum de Alfacar

Que não se removam os restos do poeta
os ossos de Lorca
serão os nossos ossos

Nem os ossos
que Franco escondeu ao mundo
podem penetrar hoje
os recessos da luz

Deixem que repousem no chão
granadino
enganando os relógios
deitados na terra num branco silêncio

Não há mármores, nem palavras
nem metáforas que possam
subir da argila
que ainda bate nas raízes
sob a terra.

Publicado originalmente em Criatividad Internacional

terça-feira, outubro 06, 2009

segunda-feira, outubro 05, 2009

Os restos de Lorca ou o desassossego

Los Lorca se oponen a "remover" los restos y se reservan derecho a identificarlos.

Los familiares de Federico García Lorca han pedido a la Junta de Andalucía que los restos del poeta no se "remuevan" de la fosa común de Alfacar (Granada) donde supuestamente se encuentran.

En las alegaciones presentadas a la Consejería de Justicia y Administración Pública ante la solicitud de apertura de la fosa, los sobrinos apuntan además que se considere la posibilidad de declarar los terrenos donde se encuentra como lugar "legalmente autorizado para el enterramiento".



Via Creatividad Internacional

O Embate de Titãs

Poema inédito, enviado para o Poeta Salutor pelo meu amigo Brissos Lino:

Virado para a imensidão
estranho a animosidade
entre oceanos
um mais acima que outro
armam o prelúdio vistoso
duma luta titânica a dois

quem é mais forte? o céu ou o mar?

o abismo superior ameaça
com negros porta-aviões carregados
de águas superiores
fingindo serenidade, o outro
já se revolta nas profundezas
prestes a explodir à superfície

mas uma luz fugidia em forma de paz
consegue ainda escapar
pelas frestas
talvez a querer evitar
o embate de titãs
in extremis
como se fosse o olhar de Deus.

5/10/09

(Brissos Lino)

sexta-feira, outubro 02, 2009

Splendore a Parigi-Orly

Il taxi correva nelle strade, un fiume in piena, chi a piedi, chi in auto, di fretta, evitava gli argini, in lotta contro il tempo, tutti gli orologi contro il suo. Arrivarono a Parigi Orly.
Ancora in tempo per quel fuoco dentro,amaro il caffè, come un falò in un campo di sogni. Quando una voce chiamò per l’ultima volta i viaggiatori, addii e baci morirono sulle labbra, ricordarono sempre la mezza luna finale prima di diventare uccelli.

(Trad. da Alessandra S. Banti)

quinta-feira, outubro 01, 2009

O Comboio

Os viajantes falam e a conversa
rola ao ritmo dos carris
Contam vidas
Oferecem olhares
e sandes para o lado
Pode até surgir o amor
numa carruagem de comboio
Há tantos segredos tão próximos
O movimento provoca
coincidências com outros corpos.

26/9/2009
Publicado ineditamente em A Ovelha Perdida