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sexta-feira, agosto 15, 2014

NA ÚLTIMA ILHA


                    
“ O que eu quero é ser eu a lutar e a apanhar o meu peixe.”
Ernest Hemingway ( em "Ter ou Não Ter")


Desde que chegara a Angela Street, depois de abandonar a sua própria velhice rotineira na Europa, que saía de casa todas as manhãs muito cedo.

Key West no extremo sul da Florida é o último lugar da América, vai-se para ele como as abelhas saltando de flor em flor.
Ele são algumas “ilhas” até chegar lá, um mar de águas largas, e quase transparentes, mas quando se aporta na cidade, o ar levemente salgado, amarra o forasteiro, como a uma velha escuna.
Quando chegou, na tarde em que Miami ficara para trás, e ainda mais longe o seu país,  ainda sentiu uma nostalgia a humedecer-lhe os olhos.

Agora, todas as manhãs, sem pensar já nisso, saía para estar junto do mar. A sua respiração era, como dizer, era marinha.
Isso, percorria as ruas desde a Angela até à William, para ver o que se passava no Schooners Bar, mais para lançar os olhos a alguns veleiros e ganhar ideias , depois descia ao Southermost Point.  Voltava pela Whitehead St., porque o seu bar era outro.
Sentava-se, com o gin, uma pedra de gelo que parecia um iceberg,  no Green Parrot.  Gostava do nome e da sua alusão aos trópicos.  Olhava para o copo e parecia-lhe sempre que a rodela de limão era um jangada.

 Ia para junto do mar. Era a sua companhia, ia tocar-lhe, sentir as mãos cheias de água do Golfo. Derivava, por vezes, os olhos para o lado da ilha de Cuba, mas a distância era ainda uma névoa imensa. 
Todas as manhãs levava blocos e lápis e as notas sucediam-se manuscritas, quem o visse, deveria perguntar-se porque não usava os meios modernos.
Mas o lápis era telúrico, estava ligado ao solo, como se quisesse ter sempre os dedos sujos de carvão. Escrevia com um minério que ainda trazia calor à humanidade.

Todas os dias almoçava e jantava pelos bares da praia, umas vezes na Smathers Beach, outras na Higgs Beach Dog Park. Não dava por viver sozinho.
  
Embora não o admitisse, esperava, sem nada porém que lhe marcasse a jurisdição da espera. Andava perfeitamente descansado, porque deixava um papel, o mesmo gesto de há anos, pregado na porta: “Estou no Green Parrot, se chegarem sem avisar”.

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segunda-feira, agosto 02, 2010

Duas poiéticas que levam a obra a Abril



Se na poesia contemporânea portuguesa há dois poetas distintos no seu discurso poético e na sua poiética (o modo de construir seus poemas), são, sem dúvida, José Gomes Ferreira e António Ramos Rosa.

Aquele trabalhava a metáfora lírica, grande parte dos poemas inserindo-se mesmo no que poderíamos dizer proximidade do surrealismo, mesmo nos seus poemas cujos referentes eram Memórias, «Na infância da janela do primeiro andar/ aquela rapariga de corcel nos cabelos» ou «O sol corria/ nos bibes do vento»;

Ramos Rosa, por seu turno, está integralmente dedicado à poesia pura, e não encontro melhor exemplo do que o conteúdo do seu livro “Ocupação do Espaço”, e o das suas mais recentes obras. Poeta da linguagem, talvez o Saussure ou o Roman Jakobson das relações entre linguística poética e a ciência dos homens, uma antropologia no poema: «Oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou.» ou «tenho o coração confundido e a rua é estreita», «soletro velhas palavras generosas» «Não posso adiar o amor para outro século»
É interessante pois notar um pequeno poema de ARR cujos referentes são dois: Abril e o próprio Ferreira, o autor de Memória das Palavras. O gosto de falar de um poeta, fazendo-o crescer por detrás do sol, evocando-o profeticamente, sem a prisão cristalina e rochosa da Sibila (que não tem lugar na Poesia), como “homem de Abril”.
O mês de Abril sempre surgiu nos poetas com a força das suas próprias raízes, que despontam, ancestrais. Desde Chaucer ( When April with his showers sweet with fruit) a Withman, até ao definitivo “Abril é o mais cruel dos meses, gerando / Lilases na terra morta).

sexta-feira, julho 09, 2010

As paisagens dramáticas de Turner

Uma breve écfrase à poética da sua pintura
***
Diz-se que Turner interpretou na tela todos os temas de uma forma épica. Diz-se que começou como pintor topográfico e pouco a pouco foi se inclinando para as paisagens, principalmente as marinhas. Escreveu-se dom de transfiguração poética, liberdade de composição, violência tonal (nos tons) para a fase final da sua obra, talvez a mais impressionante e universalmente conhecida.

A verdade é que ao transportar para as suas obras toda uma visão épica, uma minúcia dos topoi, e todo o seu ponto de vista sobre as cenas marítimas, Turner usou sobretudo a dramaticidade dos confrontos, da luz / sombras; calmaria / tempestades; céus prontos para acolher anjos ou demónios, consoante o dramatismo ou o lirismo das suas cores.

Não há estados melancólicos nos seus quadros, nem mesmo nos mais figurativos e livres do clima da aspereza e da tormenta. Paisagens carregadas de dramatismo, colorismo dramático, paisagens com um drama romântico que o próprio romantismo literário utilizou na poesia, embora estivesse a surgir o Realismo, a Revolução Industrial e o Romantismo prestes a ser sepultado.

Um realista? Sim, quando nos conduz ao cerne das tempestades marítimas, por exemplo, mas a sua paleta e a textura arrebatadora da conjugação das suas cores, sob a luz e as sombras, já prenunciava o Impressionismo; a fealdade bela de alguns dos seus quadros, porventura leva-nos um pouco mais longe, até ao expressionismo. E a aplicação da luz sobre as coisas, sejam os elementos da natureza, do céu e do mar, dos barcos ao trem a vapor, do Grand Canale calmo às tormentas, e o amálgama que disso tudo fez com a fulguração das suas cores misturadas e já sem formas definidas o colocaram sob a perspectivação do abstraccionismo avant la lettre, que, disseram críticos de arte, veio a surgir nas formas e nas cores fundidas, como nas obras de Kandinsky e de Paul Klee.

Nas telas de Turner, que nos colocam diante da rudeza dos elementos naturais, os seus redemoinhos não são de água, nem de ventos, são de luz, assim toda a teoria anterior da paisagem convencional estava subvertida. Não haveria já lugar para a mimésis aristotélica, mas para a criação pura e simples de algo novo, a que o vocábulo hebraico “bara” serviria, não fosse o exagero do seu uso neste caso. William Turner foi um intérprete das atitudes agónicas, não se pode afirmar que as suas interpretações pictóricas não sofram de passionalidade. Turner pintou a exaltação da natureza, no que ela tem de mais agreste e de mais anti-paixão.

Foi essencialmente um poeta da cor, dos confrontos entre luz e sombras (não trevas), um poeta das tempestades. Não pintava formas, mas estados de cor, atmosferas exteriores da natureza, névoas com conteúdos.


Publicado como inédito em http://ab-integro.blogspot.com/

quinta-feira, março 11, 2010

As mesmas teclas de Eugénio de Andrade



Tu já tinhas um nome e eu não sei

se eras fonte ou brisa ou mar ou flor

nos meus versos chamar-te-ei Amor


Este madrigal de apenas três versos de Eugénio de Andrade reflecte o que a sua poética possui, entre múltiplos achados, de lirismo da repetição como um acto criador.
A meu ver, uma das características marcantes da poesia do autor de «Obscuro Domínio» é esse andar de palavra em palavra, sugando-lhes o tutano ( ou melhor, para o estado lírico da palavra poética, sugando-lhes o mel), repetindo-as desde 1942, para desencantar o cerne da Poesia.
Esta é, na verdade, a tarefa em que o poeta se reedita, com feliz pertinácia, como ele próprio declarou, em 1971, na obra acima referida: «Recomeço no coração da pedra a juntar palavras».
Ciente da dureza da pedra, nela trabalha para arrancar formas onde o sol da poesia possa estender-se, trabalho de mineiro ou de escultor, é, curiosamente, noutro coração que o poeta repousa, no coração do lume: «Amo o repouso no coração do lume», embora aqui esteja a designar um fruto, a romã.
Esta é também uma das características da poesia de Eugénio, sublinhada há duas dezenas de anos por outro grande poeta, Ramos Rosa, a qual consiste na procura da génese ou núcleo do universo «que seja ao mesmo tempo matriz orgânica e linguagem viva.»
Assim, o descanso do poeta é procurar a palavra, trabalhar a palavra, repetir a palavra. Desta maneira, com o seu segundo livro «As Mãos e os Frutos» - de resto, o primeiro fundamental de uma vastíssima bibliografia - até ao mais recente ( no momento em que escrevo, será «Os Sulcos da Sede», de 2001, o último que li), o poeta insiste em percorrer os seus vocábulos de textura material, para desta se libertar até a palavra ser signo puro, sempre sob o impulso de um vocábulo de acção que é recorrente na linguagem do poeta: recomeço.
E as palavras, que se repetem, começaram por vir de longe, porquanto na obra de Andrade predomina a visão e a memória. Os vocábulos eugenianos vêm da matéria e do que é imaterial, vêm dos elementos da natureza e do universo, da sua mecânica celeste.
Mãos, dedos, olhos, rios, fontes, choupos, juncos, folhas, espigas, feno, erva, rosas, pólen, frutos, romãs, laranjeiras, aves, cavalos, lume, fogo, luz, verde, carmim, púrpura, brisa, dança, flauta, montes, nuvens, astros, estrelas, luas, charcos, a noite e a madrugada.
Poderia continuar pelo seu léxico fora. A própria dimensão do espaço, que às vezes é físico, outras psicológico, na poesia do autor de Ostinato Rigore é também recorrente ao termo «longe» ou à palavra «fundo».
Em «Obscuro Domínio», obra já muito distante, escrevia o poeta: «Vejo ao longe os meus dóceis animais», noutro livro muitíssimo mais perto, no tempo, escreve: «Veio de longe, e mal chegou
partiu para mais longe ainda» («Os Sulcos da Sede»)
Por vezes sentimos na sua poesia que existe como que um apelo, uma exigência das palavras para figurarem exactamente no poema. Um dos maiores críticos literários portugueses, e especialmente da obra do nosso poeta, Óscar Lopes, certificou essa recorrência ao escrever «que às vezes, e de repente, sentimos que, pelo contrário, estão as frases, as palavras, a utilizarem-nos como se fôssemos nós, e não elas, a servir de veículos para certo sentido». (prefácio à velhinha Antologia Breve, Colecção Duas Horas de Leitura, 13, da extinta Inova, 1972).
O exercício da leitura da poesia de Eugénio de Andrade é igual hoje, em 2005, ao que foi, com certeza, em 1942, um percurso musical sobre as mesmas teclas.
2005

sábado, janeiro 30, 2010

Quando toca às 17:45, as crianças querem todas a lua, não no sentido em que Calígula a queria, mas a liberdade de correr uns contra os outros, uns pelos outros, pelo recreio até aos pais e avós.

O meu neto Vasco, veio e disse-me:-Avô, hoje fizemos uma poesia. Que as pedras cantam. Sabes, avô, uma poesia é uma imaginação.

Parei, respondi-lhe a perguntas seguintes que também eu fazia poesias e que sabia que as pedras podem clamar, cantar e chorar lágrimas, sobretudo quando chove.

Mas pensei: ando a ler há quatro décadas pelo menos, Aristóteles, Horácio, Shelley, Johannes Pfeiffer, Todorov, Jean Cohen, Rainer Maria Rilke, e até Marcuse, para saber o que é a Poesia. Ouço cursos de Poética, Estética de Plotino, até o "Carteiro de Pablo Neruda" sobre a metáfora.

E o meu neto, Vasco Parreira, 7 anos, disse-o de uma penada: - Avô, é uma Imaginação. A poesia é uma imaginação.

(Inédito inicialmente editado no Facebook)