segunda-feira, abril 29, 2013

SÍSIFO HOJE






“arrastam uma pedra terrível”
Mário Quintana


Um homem
arrasta uma pedra terrível, está sozinho
na montanha, entre o cume e o abismo
tem um declive mortal
a pedra é velha, lançou raízes
o vento e as flores
despontam na pedra, o vento
ao passar lembra gazelas
que cobrem o sol nas planícies
e o homem chegado ao cimo
assiste à sua pedra triste
a rolar para o princípio.

27/4/2013
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sábado, abril 27, 2013

Na Baía, num estanhado e escuro inverno




Na Baía, num estanhado e escuro inverno,
quando o sol tinha pouca coisa
de Ipanema,
numa estranha rua a ficar deserta,

caminhei só com o som dos próprios passos
para a poesia das estórias
de Amado.

26/4/2013
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segunda-feira, abril 22, 2013

O SILÊNCIO É O QUE É


Escrevia silêncios”
Arthur Rimbaud
 
O silêncio é a garrafa vazia que chega à praia,
o silêncio
é no fundo do mar
um peixe ébrio por excesso de cores,
é a onda que vem bordar a beira mar
e esquece-se do regresso, mas como
não o esquecimento?
Se uns pés passam como verdade
descalça na praia. A solidão
do silêncio
é uma vez passado o pássaro
o ar torna ao sossego.  É o silêncio
uma harpa à espera ou um velho
gato a jogar xadrez ao sol.
Como os dedos da mão, não há
um silêncio igual a outro.
 
 
20/4/2013
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Poema publicado inédito Aqui

quinta-feira, abril 18, 2013

PASSAM A MÃO PELO ROSTO


 

“Aqui cada um é o seu próprio
carcereiro, irreconhecível
e anónimo.”
Paal Brekke (Poeta noruguês, trad. Amadeu Baptista)
 
 


 Passam a mão pelo rosto e não encontram nada
o nariz adunco
faz uma curva para o abismo, os olhos
sem possibilidade de evasão, os lábios
apenas com a sintaxe da dor
São estranhos
marcados com seis pontas estelares
como uma roda dentada
que tritura o corpo
Passam com as mãos nos ouvidos
e sentem a falta das canções maternas.

18/4/2013
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(Foto de Dachau Concentration Camp)

segunda-feira, abril 15, 2013

A TRAGÉDIA




Tão nus com uma nudez sem sombra
estão no chão, os olhos
ligam-nos ao chão, só o menino
ergue a esperança
que virá, o próprio mar
humilha-se aos seus pés.

14/4/2013
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Picasso, Tragédia, Fase Azul

quarta-feira, abril 10, 2013

Carta de Virginia Woolf




Sinto que as vozes batem, de novo
nas paredes da minha cabeça, tenho a certeza
que é o morse intermitente da loucura
fomos felizes até surgirem estas vozes, duas pessoas
jamais foram tão felizes como nós
Abrirei os braços, soltarei os cabelos
serão a cabeleira de uma ninfa nas águas
deste rio, o meu corpo será um dardo na corrente
Na margem deste rio sei que haverá
um pescador de casaco vermelho, ovelhas
espalhadas sob a sombra dos salgueiros
Perdi tudo, menos este espaço pequeno
que ocupo na morte, não vou continuar
a estragar a nossa vida. Espero por ti no fundo rio.

10/4/2013


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terça-feira, abril 09, 2013

Cântico de Maria Madalena


Eu vi-Te na flor da manhã
na luz dispersa pelas primeiras horas
de domingo

Naquele segundo a pedra
pareceu-me transparente, o ar
um espelho que reflectia anjos

Eu vi os lençóis
arrumados no vórtice imóvel
do sepulcro
quando ia pousar ramos
de incenso sobre o corpo.

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segunda-feira, abril 01, 2013

ANNE SEXTON TUDO EM MIM É UM PÁSSARO




 

Tudo em mim é um pássaro.
Adejo com todas as minhas asas.
Queriam extirpar-te
mas não o farão.


(Anne Sexton, poeta americana, 1928-1974, morte por suicídio)
 


A sua vida começa pelo fim
não é fácil
livrarmo-nos da morte, os fumos
do escape a cegarem seus olhos
com as lágrimas
Escrevia cartas de censura a Sylvia Plath
porque lhe roubara a morte, arrastando-se
primeiro ao seu regaço
a morte que estava pegada à sua pele
que respirava, escondida, dentro dela
da beleza dos seios, bebendo-a
como o leite da aurora.


1/4/2013

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