1.
Passar a ferro
Na “ars poetica” inicial do
seu livro recente de poemas, João de Mancelos(JM) confirma o pensamento de
Adolfo Casais Monteiro sobre a poesia ser cosa
mentale, sem raízes no inconsciente.
A Poesia pensa-se, é acto consciente.
Diz JM que “poema a poema” passa a alma a
ferro:
os pequenos
incidentes dos dias
não são mais do que
dobras e vincos.
poema a poema, passo
a alma a ferro.
Salvo melhor opinião, resolve problemas
interiores, ontológicos mesmo, através
do poema que (se) escreve.
No presente livro, das Edições Colibri, Lisboa
, 2014, JM serve-nos um conjunto de 62
poemas límpidos, de uma claridade sem poeiras, mesmo aquelas que os raios
solares podem salientar.
A simetria formal de cada poema, na primeira
parte do seu livro, dispostos no papel graficamente sob a forma de tercetos,
dão-nos essa medida da roupa, quero dizer do texto, desenrugado, bem engomado
sem dobras nem vincos.
A forma aí é fundamental para dar uma
estrutura a cada poema de texto ordenado, eximiamente ordenado, onde as
palavras correm sem obstáculos
para usar a imagem do ferro de engomar.
Convém dizer, antes de escolher e salientar três desses poemas da primeira parte do livro
e outro da segunda, que em todo o caso estamos perante poemas de amor, de uma
paixão contida, escritos de uma forma disruptiva quanto a esse amor.
Todavia,
o autor não parece alimentar o amor, nem a paixão, nalguns casos – leia-se
poemas- rasga-os mesmo.
Alguns
exemplos breves:
“vivíamos trocando beijos envenenados/ e
discussões em círculos/(…)// só tive saudades do ódio, / de que tanto
precisava/ para poder dormir em paz” (
do poema “há mais de quinze anos”)
“não me procures,
amor, / nos lugares do desencontro: /
estações, aeroportos, hóteis” ( do poema “nowhere”)
“hóspedes um do
outro, / o seu amor consistia / no ranger das molas de um colchão.” (do poema
“havia um casal”)
“só escutara a
palavra amo-te numa canção da rádio” (do pungente poema sobre um suicídio
“limbo”)
Claro que também existem poemas de perfeito
amor, aquele que se diz em metáforas e com reflexos tão rápidos que podem
fugir-nos – se concordamos com Freud quando reduziu a criação artística a um
“reflexo” de condições fisiológicas - , a verdade é que são instantes que quase
nos escapam, os seguintes:
“às vezes, depois do
amor, / quando feras dóceis rondam o nosso sono”, “às vezes, quando me encosto
à nudez, exausto”, “às vezes, quando me inventas um nome” (do poema “depois do
amor”).
Mas, quiçá os dois melhores poemas de amor do livro sejam estes:
três
da manhã
o
que a noite traz à costa é inesperado:
o
teu corpo tão perfeito quanto um búzio
na
primeira praia.
(…)
amamo-nos
até os nós do sono desatarem
e
dentro de ti o oceano exausto
chamar
o teu nome secreto.
_____________________________________
com
as mãos manchadas de azul
regressarás
a mim com as mãos manchadas de azul
e
os pés sujos de tanto correr mundo,
ignorando
que aqui só ardem ruínas sem mãe.
(…)
pedirás
que te ame, riso a riso, numa cama de folhas,
mas
o outono passou há muitos anos,
e
tem a idade da noite quando chove.
2.
Três poemas para a história
da Literatura em geral
Não é para admirar que um poeta doutorado em
Literaturas Comparadas e Norte-Americana, escreva sobre poetas de outras
latitudes literárias.
Um poema como “pedidos de empréstimos”,
abre-nos um caminho de reflexão sobre o que Harold Bloom escreveu acerca da
“angústia da influência” e dos poetas precursores.
“toda
a noite, as vozes de poetas mortos
Me
emprestaram versos e canções,
Numa
insónia ardida até de madrugada.
whitman
e pessoa, os mais insistentes”
O
próprio poema que dá título ao volume “a sombra do pó” ( “as
memórias entram com o vento/ sob a porta, escorrem pelas vidraças, / pingam
avulsas no lago”), sobre o pó do tempo no sentido do passado e das suas
recordações/memórias, não deixa de me lembrar o romancista John Fante,
americano, e o seu “Pergunta ao Pó”.
Sylvia
Plath aparece num belíssimo terceto que é uma fotografia da malograda quanto
bela autora de “Ariel”:
“quando
nem os médicos nem os loucos nem os santos
a
escutavam,
ela
negociava o silêncio com as aves mais azuis.”
Finalmente, um poema sobre Emily, a Dickinson.
E neste as metáforas assumem papel estruturante para nos abrir caminho à
poética da estranha poeta norte-americana de Amherst.
“Aranha laboriosa” que tece poemas “em fios
de noite”, versos que foram “um intranquilo fogo”, que amou homens e mulheres
“escondida entre as palavras.” Poeta da solidão, Emily, como poeta de uma certa
solidão ordenada em poemas, a de João de Mancelos neste seu livro de poesia
para tratamento de feridas.
Aveiro,
05-02-2015
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