sexta-feira, agosto 18, 2006

A Lição de Giuseppe Ungaretti

Desde Tristan Tzara a António Maria Lisboa, para falarmos de criadores de movimentos literários, em universos distintos do início do século XX, que os poetas foram compelidos a impor uma etiqueta à geração, ao grupo, ao movimento em que se integravam, e às técnicas apresentadas.
Tiveram que elaborar manifestos, umas vezes para dar visibilidade aos seus postulados poéticos, outras para conferir a estes compreensibilidade, quer diante do momento, quer perante o julgamento da história. Para além dos textos normativos desses argumentos, que determinavam o modo de escrever - a escrita automática, por exemplo -, nomeadamente no primeiro manifesto surrealista de 1924, misturavam-se teorias literárias e até da área da psicanálise que surgia com Freud.
Embora fosse companheiro de época literária e dos ismos em que se integravam aqueles dois poetas, que hoje têm em comum o esquecimento, o poeta italiano Giuseppe Ungaretti pronunciou em toda a sua vida literária uma lição, que valeu como um manifesto. Como um dos grandes poetas do nosso tempo, do século XX, Ungaretti afirmou os seus argumentos em dois curtíssimos versos, ao escrever : Deslumbro-me/ de imenso. Poeta dos mínimos nadas e dos grandes segredos, que lhe valeram a classificação de ter uma linguagem poética hermética, escreveu ainda em versos de tamanho pequeno, outro manifesto: Tra un fiore colto e l’altro donato/ l’inesprimibile nulla ( “Entre uma flor colhida e outra dada / o inexprimível nada” ).
Para este poeta nascido no Egipto no ano em que nasceu Pessoa ou T.S. Eliot, 1888, que ensinou literatura em Roma e em São Paulo, e seguiu as pisadas do futurismo, do surrealismo e do hermetismo, não se podia ir mais além em poesia.
A busca do despojamento e do próprio segredo do eterno, com versos densos de mistério, mas também com poemas nítidos, cujas palavras nada escondem e nos fazem ver ou quase tocar nas coisas mais simples, como nos versos finais de um poema sobre o Natal: “Estou / com as quatro / cabriolas / de fumo / do velho lar”. Ou nestes outros versos sobre a capacidade que o mar tem de nos seduzir: “Com o mar / tenho feito para mim / um ataúde / de frescura.”
Certamente por esta capacidade de a poesia, por vezes, ser palpável, o poeta escreveu que “ já não escutaremos a poesia; poderemos apalpá-la, olhá-la.”
No que concerne à sua obra poética, no nosso país, só poderemos tocar num volume esgotadíssimo, editado pela Dom Quixote, em 1971, nos Cadernos de Poesia. O Sentimento do Tempo, que é a par de Vida de um Homem, Hiena, 1985, as únicas colectâneas de poemas de Ungaretti excpecionalmente traduzidas para português, em livro autónomo. Em 1978, Jorge de Sena também enriqueceria a sua obra quase monumental Poesia do Século XX, com onze poemas de Ungaretti.


SOU UMA CRIATURA

Como esta pedra
de S.Miguel
assim fria
assim dura
assim enxuta
tão ausente
tão inteiramente
desalentada
Como esta pedra
é o meu pranto
que não se vê
A morte
abate-se
vivendo.

(Tradução: J.T.Parreira)

SONO UNA CREATURA

Come questa pietra
del S.Michele
così freda
così dura
così prosciugata
così refrattaria
così totalmente
disanimata
Come questa pietra
è il mio pianto
che no si vede
La morte
si sconta
vivendo.

( Giuseppe Ungaretti)

2 comentários:

hfm disse...

Gosto tanto de Ungaretti. E gostei da tradução, destaco:

"A morte
abate-se
vivendo."

redonda disse...

Andava à procura de informação sobre Ungaretti. Gostei muito deste post. Espero que não se importe que retire daqui alguns versos e faça depois um link para aqui...