quarta-feira, janeiro 30, 2008

Como Abraão

Ora mordo
Come un bambino la mammella
lo spazio

Giuseppe Ungaretti


Morde
como um menino os seios
da Via Láctea
Na boca aberta um espanto
sorve o leite matinal
que vai nascer
da aurora
Enquanto isso procura
entre as distâncias
das estrelas
os nebulosos mares
Tudo o que está velado
procura
perde o inacabado número
das estrelas
e regressa ao zero
e recomeça do que sobra
do coração
cansado.


30/1/2008

terça-feira, janeiro 29, 2008

A Imobiliária

A casa vende-se assim, imóvel
no chão, os objectos na penumbra
deixados na dimensão do natural
sobre um móvel e também
ao fundo da memória
A mesa de que tanta boca dependeu
a um canto um sofá disciplinado
fazem parte do recheio
A porta verde à frente, que não abre
a luz para os insectos
a colcha amarelada sobre a cama
cinco almofadas melancólicas
ficarão no reflexo do espelho
que abre na parede o infinito.

22-11-2007

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Delmore Schwartz, um poema

Na cama nua, na Caverna de Platão
(In the Naked Bed, in Plato's Cave)

Na caverna de Platão, nua
A cama com as luzes reflectidas
A deslizarem na parede,
E carpinteiros que martelam na sombra
Debaixo da janela,
O vento agitou as cortinas toda a noite,
Uma frota de camiões rua acima, relinchando,
Com a carga coberta, como de costume.
O tecto acendeu-se outra vez, um quadrado
Deslizando para as paredes.
Ao escutar os passos do leiteiro,
Seu esforço pelas escadas, o tilintar das garrafas,
Levantei-me da cama, acendi um cigarro,
e andei para a janela. A rua empedrada
Estendia a quietude que vinha das casas,
A vigília dos postes de luz e a paciência do cavalo.
O puro capital que temos num céu de inverno
Fez-me voltar para a cama de olhos exaustos.

(Trad. J.T.Parreira)

sábado, janeiro 26, 2008

Dobrada à moda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Álvaro de Campos)

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no
morro da Babilónia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

(Manuel Bandeira)

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Dossiê Delmore Schwartz na CRITÉRIO

Blockquote J. T. Parreira>Tradução de "America America"...O dinheiro, nessa sociedade, passou a ser um fim em si mesmo, fetichizado, a ponto de os meios de que a sociedade dispõe para alcançar os seus objetivos qualitativos terem se transformado numa potência independente>>leia artigo

>O poeta projectado no Hudson River...Essa ausência de interrogação direta do próprio tempo no texto poético é como que sinônimo de ausência de rebeldia, trocada pelo gosto por um beletrismo que promete a ilusão de ascendência fácil ao panteão da academia>>leia artigo

A revista insere também textos de Virna Teixeira e Alexandre Andrade.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Marilyn Monroe



"made your lips more real with lipstick"
Allen Ginsberg

Tornas os teus lábios mais reais
Com baton, os teus lábios
Vermelhos
Engolem uma plateia
Cheia de olhos.

16/1/2008


&

As Meninas de Diego Velásquez, estão aqui

As meninas de Velásquez

segunda-feira, janeiro 14, 2008

A Poesia surrealista de Lorca

Estava no terraço lutando com a lua.
Enxames de janelas crivavam um músculo da noite.
Nos meus olhos bebiam as doces vacas dos céus
e as brisas de largos remos
golpeavam os cinzentos cristais da Broadway.

A gota de sangue buscava a luz da gema do astro
para fingir uma semente morta de maçã.
O ar da planura, impelido pelos pastores,
tremia com um medo de molusco sem concha.

de Poeta en Nueva York
(«Danza de la Muerte»)

(Trad. J.T.Parreira)

Lascaux


Ler Lascaux hoje aqui:

domingo, janeiro 13, 2008

Music Under New York

Ter viajado debaixo de Nova Iorque
com a música a travar
os nossos passos
Há algo sobre esta quietude
nas ruas debaixo de Manhattan
não há pó
E aqueles trens o que estão a fazer
debaixo de Nova Iorque
é a parte sólida da música.

12/1/2008

terça-feira, janeiro 08, 2008

Helena de Tróia

Helena de Tróia

Ao contrário das mulheres de Atenas
a bela Helena foi rastilho
de guerra
entre gregos e troianos

o mar Egeu não conteve as lágrimas
da cidade destruída
por um cavalo de pau.

Está-lhes nos genes
as mulheres
ou fazem a guerra
ou sofrem-na.

Palmela, Janeiro de 2007

(Brissos Lino)

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Encomenda a Stravinsky

Uma partitura onde desça a música
de onde um arco
de violino atire uma pomba
e uma ampla mão conduza
de onde uma profunda
garganta sopre desde a alma

(enquanto Stravinsky
acendes pássaros)

A partitura de onde os anjos
puxem as rédeas dos címbalos
e pastores anoiteçam os rebanhos
nas vigílias do céu
A partitura de onde um arco
de cello serre o silêncio.

3/1/2007

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Um poema de Ángel González


EL OTOÑO SE ACERCA

El otoño se acerca con muy poco ruido:
apagadas cigarras, unos grillos apenas,
defiendem el reducto
de un verano obstinado en perpetuarse,
cuya suntuosa cola aún brilla hacia el oeste.
Se diría que aquí no pasa nada,
pero un silencio súbito ilumina el prodigio:
ha pasado
un ángel
que se llamaba luz, o fuego, o vida.
Y lo perdimos para siempre.


O OUTONO APROXIMA-SE

O outono aproxima-se sem muito barulho:
cigarras apagadas, apenas grilos
que defendem o reducto
de um verão obstinado em ser eterno,
cujo rasto esplêndido ainda brilha no oeste.
Dir-se-ia que aqui nada se passa,
mas um silêncio súbito ilumina o prodígio:
passou
um anjo
que se chamava luz, ou fogo, ou vida.
E perdemo-lo para sempre.

(Trad.J.T.Parreira)