quinta-feira, dezembro 11, 2008

1922 do nascimento da Literatura da Existência

A segunda década do século XX começaria fragmentada. «Quais são as raízes que estão presas, que ramos crescem\ Neste amontoado de pedras?» perguntava o poeta T.S.Eliot no poema dramático «TERRA SEM VIDA», que, dizem alguns, teria sido originalmente pensado como obra teatral e acabou por ser escrito como uma collage poética; e outros que se trata do mais famoso dos poemas modernos, editado em 1922.
A Primeira Guerra Mundial terminara em 11 de Novembro de 1918, as ruínas da velha Europa foram herdadas e entraram pela nova ainda algum tempo depois.
O grande poema de 433 versos de Eliot é a visão do mítico Tirésias, um velho cego, que vê e nos ensina a ver o passado e o futuro no pensamento, na imaginação, misturando memória e desejo.
Era «Um monte de imagens quebradas, onde o sol bate », a imagem que a Europa oferecia ao filho do homem do fim da primeira década do século XX.
Multidões caminhando em círculo, diz o poeta no verso 55º, é bem a imagem da desorientação do homem num mundo em ruínas, ruínas da moral, do que é suposto ser verdade, das relações, ruínas que são o amálgama religioso com os seus sincretismos, de ontem e de hoje. O poeta precisa a visão dessa multidão de homens: «Uma multidão fluia sobre a Ponte de Londres, tantos, \ Eu não pensava que a morte tivesse destruído tantos.» A Bíblia Sagrada desde a Queda apontou esse tipo de morte na humanidade, homens mortos espiritual e psicologicamente. E tanto o pós-guerra da I como o da II Guerra Mundial, nos apresenta no quotidiano essa humanidade sobrevivente, solitária e «demente» à procura de razões e de valores, em demanda de si própria.
Passadas já mais de oito décadas, causas e feitos continuam as mesmas, sendo que hoje a recusa ao divino e aos valores espirituais, éticos e morais, assumiram moderníssimas e sofisticadas formas.

O SEGUNDO TÍTULO, «ANABASE»

O título desta obra poética de Saint-John Perse, publicada em 1922, é uma palavra grega que em síntese significa «expedição para o interior», ou que se associa a escalada até ao imo de algum lugar.
Este poema inteiriço e disposto em 10 partes é uma peregrinação a partir do mar, das origens, para dentro do próprio homem, do seu entendimento como humanidade. É a arquitectura do ser humano a partir do chão, do solo, onde se fundou. «Estabelecendo-me com honra sobre três grandes estações, auguro bem do solo onde fundei a minha lei », desde o início nos confere, quanto a nós, a dimensão dos primeiros passos do homem na terra, até à sublimidade do projecto para que o homem fora criado, em qualquer circunstância, para viver e se espalhar:
«Homens, gente de poeira e de qualquer figura, gente de negócio e de lazer (...) gente dos vales e dos planaltos e dos mais altos declives deste mundo(...) farejam indícios, sementes e confessam desalentos a oeste; seguem pistas, estações, erguem tendas no vento leve da aurora; ó prospectores de pontos d|água na crosta do mundo(...).
O mundo e a peregrinação do homem, a sua escalada da base de uma solidão afastada do divino por incorrer na desobediência e no primeiro pecado, no Éden, para onde? O início das primeiras ruínas a partir do assassínio de Abel, é o que podemos entrever neste poema como o lugar atingido. Tal peregrinção é, contudo, uma belíssima tentativa não lograda de alcançar um lugar onde o sol esteja mais perto. «Depois de tanto tempo a caminharmos para oeste » o que é que o homem do século XX conseguiu?

ELEGIAS DE DUINO, RAINER MARIA RILKE

Os motivos condutores, como se diz, da obra poética de Rilke, «o último dos poetas imortais», são Deus e a Morte. Estas duas matrizes continuam a revelar-se nas Elegias, que o poeta de expressão alemã compôs no castelo de Duíno, perto de Trieste, sobre o mar Adriático, e revelam-se como em imagens presas que trazia em si há muito, e que a hecatombe da I Guerra Mundial, principalmente, terá feito eclodir em poesia que atingiu o estatuto de mítica. Iniciado em 1910 e completado também em 1922, o conjunto das Elegias repete o canto preocupado do escritor. Publica as suas elegias três anos antes de morrer com leucemia, em 1926.
«Que fazes tu, poeta? Diz! - Eu canto | Mas o mortal e monstruoso espanto | Como o suportas, como aceitas? - Canto.» (Trad. Jorge de Sena )
Clamor solitário ante a hecatombe, como alguém escreveu, os seus poemas a partir daquela data afastam-se, perceptivelmente, do Deus da Bíblia Sagrada, sobre o Qual tão bem canta nos poemas de anos muito anteriores, de antes da Guerra.
Estes são meditações religiosas nas quais se harmonizam um catolicismo do sul, por ser de cultura austríaca, e um protestantismo de Alemanha do Norte, ambos no entanto com uma visão sobre Deus. «Só quando desdobram as asas| é que despertam qualquer vento: | Como se Deus, com as suas largas | mãos de estatuário, passasse | as folhas do escuro Livro do Princípio ». (do poema Os Anjos, trad. Prof.Paulo Quintela) ou do «Livro de Horas» (1902): «ETERNO, a mim vieste revelar-Te.|(...)| Leio então novas de ti: o Evangelista | escreve por toda a parte da tua eternidade.»
As Elegias são, na verdade, de outro lugar, são um espelho interior partido porque reflecte a realidade que o poeta observou. Pedaços de espelho que reflectem, afinal, com estética e com alguma crueza, todos os momentos do real, espaços, mulheres, homens, anjos. Um dos versos mais profundos da primeira elegia, exprime isso, e torna-se mesmo uma dicotomia ligando o belo e o terrível: «o belo apenas é o começo do terrível ».

«ULYSSES», DE JAMES JOYCE, 8OO PÁGINAS DE UMA VISÃO

Escorado numa ficção que recorre aos dias e trabalhos de Ulisses e de outras personagens da Odisseia, de Homero, em pé sobre as mesmas ruínas dos primeiros vinte anos do século XX, James Joyce escreve uma admirável, polémica e, por vezes, impenetrável obra literária, que o ano de 1922 vê à luz enevoada e fria de Fevereiro em Paris, onde o escritor então se radicou. Ulysses é, talvez, a única e verdadeira obra total do século passado, pois abarca o poema, o drama, a comédia, o ensaio, o sermão, a ópera. O mundo pôde ver-se aí retratado, desde as ruínas da I Guerra que deixou a Europa viúva (1917) até ao começo dos anos vinte frivolos e fáceis (1921), datas entre as quais o livro foi escrito.
No entanto, Ulysses nada tem a ver com essa terrível guerra, o seu leitmotiv e suas alusões às ruínas da Europa são outras.
Desde logo as ruínas da hipocrisia anglo-saxónica - o livro foi proibido por ser alegadamente pornográfico. Depois, uma alusão a ruínas de um relacionamento, o do confronto de duas raças que já prosseguia na Europa, a raça judia ( do protagonista Leopold Bloom ) e os europeus. Finalmente, ruinas ocultas na aparente inocência de um dia como outro qualquer dia, um dia vulgar - o dia 16 de Junho de... 1904; o jornal de Dublin, The Irish Times, desse dia anunciava, na realidade, coisas diversas: notícias sobre a guerra Rússia-Japão; a agitação do mercado bolsista na América por causa do aumento de capital de uma grande empresa, a Southern Pacific; 500 pessoas, principalmente crianças, que morreram num incêndio a bordo de um barco a vapor nas águas do East River, no porto de Nova Iorque; um julgamento mediático do crime de adulteração de leite; etc.
Mas é no decurso de um dia semelhante ao mais vulgar dos dias, que a vida de um homem e de uma cidade se desenrola, sem desgraças nem eventos excepcionais, numa profecia dos tempos cinzentos, da apatia e do tédio com a Europa entorpecida a preparar as verdadeiras ruínas da I Guerra e, depois, os anos em que os ovos da serpente do bolchevismo, do fascismo e do nazismo iriam ser postos a chocar. No entanto a volumosa e invulgar obra, do ponto de vista da narrativa convencional, foi escrita na Europa Continental entre 1914 e 1921. James Joyce agarrou a Odisseia de Homero e modernizou-a e deu às suas personagens uma cidade do mundo real, Dublin, que está, como se sabe, numa ilha.

EPÍLOGO

Vastos territórios da literatura da existência, como alguém lhes chamou, estas quatro obras publicadas entre os despojos do mundo saído de uma grande guerra terrível, em 1922 lançaram as bases para o homem se pensar a si próprio, mas não desligado do divino, ainda que a gramática da escrita e do pensamento pudesse indiciar o contrário, isto é, um ateísmo por princípio, que não foi o caso, felizmente para a grande literatura do século XX.
Ano de publicações-chave para a literatura mundial com a qual se contribuiu para uma análise do homem e visão do mundo, do ano de 1922 bem se pode dizer, fazendo côro com T.S.Eliot, que com estes fragmentos de beleza escoramos nossas ruínas. Ainda que para novas ruínas.

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