sexta-feira, maio 23, 2008

Letras : Um naturalismo à maneira de Hemingway

A disposição dos dois assassinos no terreno é minimalista. Al e Max, ao entrarem no restaurante do Harry, nem sequer o fazem com a eficaz estratégia exigida às mentes preparadas para o mal. A encenação da sua entrada foi para dar nas vistas, na pacata e quente Summit, no Ilinóis.
Com «Os Assassinos», ou «Matadores» (1), no original «The Killers», Ernest Hemingway tem entre mãos os ingredientes para a violência dos subterrâneos urbanos, mas rejeita assim inscrever-se, avant la lettre, na escrita americana dos hard boiled ( Os Duros de Roer ), aos quais a sua sombra se estendeu por toda uma geração, atingindo até o romance dos chamados profissonais, a literatura negra dos incontornáveis Dashiell Hamett e Raymond Chandlers.
A simplicidade dos recursos estético-literários a que Hemingway recorreu, a vivacidade jornalística da sua linguagem (2), colocam essa short story, inicialmente publicada na revista Scribners, em 1927, no topo das obras-primas do conto moderno. Geralmente, o autor de «Por Quem os Sinos Dobram» prefere o discurso directo, com recurso a uma dialogia curta e simples, quase banalizada em função dos protagonistas, como é o caso paradigmático de «Os Assassinos».
Hemingway foi um escritor que viu as suas ficções; um dos seus vários prefaciadores, Philip Young, escreveria que «como sucede a muitos ficcionistas, a relação entre a obra de Hemingway e os acontecimentos da sua própria vida é imediata e complexa.»
O naturalismo à maneira de Hemingway, isto é, a narração do que ele conhecia, do que tinha observado, abre ao leitor a porta de uma «reportagem», iniciada num estilo jornalístico, de um clima de suspense, de mistério, que faz o transporte da ironia para a expectativa, do peso volátil da incerteza para a força do que se chamaria fate ou o destino.
A breve representação em um acto de índole satírica que existe nos discursos directos dos assassinos profissionais, contratados para matar um boxeur que acaba por quebrar a sua própria rotina não indo ao restaurante por volta das seis horas, sustenta-nos nesse clima de suspense, porquanto os actores principais são verdadeiros comediantes, com um estranho non-sense que raia o absurdo.
São inimitáveis as suas frases espirituosas que levaram alguns críticos literários académicos a classificar o conto como uma soberba peça de vaudeville.«-Que é que se faz aqui, à noite? - perguntou Al », quando se refere ironicamente à pacatez da cidade.«-Janta-se - mofou o amigo. - Reúne-se aqui tudo a mastigar a jantarada.»«-Porque é vocês vão matar Ole Andreson? Que é que ele lhes fez? – Pergunta George, o empregado do restaurante que logra manter um discurso temerário perante os assassinos.«-Nunca teve oportunidade de nos fazer nada. Nem nunca nos viu, sequer.», afirma com a ironia que se adivinha, o gangster Max.«-E só vai ver-nos uma única vez- disse Al », o outro gangster.
Estas e outras falas, sobretudo dos matadores, oferecem, na sua ingenuidade de diálogo de comédia, uma «amostra do mal sob a forma de uma conversa aparentemente banal» - segundo o escritor cubano Cabrera Infante -, em que a simples conversa conduz à violência que está escondida em toda a narrativa.
Mas o conto tem sobretudo uma estrutura psicológica. Induz ao medo. E exprime também uma filosofia, cujos contornos escondem a relação dramática do ser humano com o Bem e o Mal, com o destino religioso e existêncial do homem, o tal ser-para-morte de que Heidegger escreveu, e que está bem representado no protagonista que motiva a short story mas só aparece no final da mesma, quase sem rosto, resignado, sem poder alterar seu destino.
Esse par de criminosos inicia a sua jornada vespertina mais pela conversa, do que pela acção, a fim de liquidar o boxeur sueco. E a causa dessa sentença de morte? Só o próprio sabia qual era e o que motivara a sua sentença, segundo as regras do sub-mundo do crime organizado. -«A questão é que eu não procedi bem.- Falava num tom monocórdico.- Não há mesmo nada a fazer.»
Não se conhecendo assim a identificação da causa, estava preparado o campo para o castigo incontrolado pelo homem, que só poderia aguardar a morte. O candidato a ser assassinado exprime em bom rigor filosófico o drama da condição humana, no que concerne à espera da morte e como por ora logra burlá-la. A sua não reacção ao seu destino, sendo atípica, é no entanto o paradigma do protagonista resignado à fatalidade, que pode fugir, mas já se não interessa por fazê-lo.«-Não. Não há nada a fazer. Daqui a bocadinho, levanto-me e vou para o meio da rua.»
Tanto ele como os seus assassinos, já alguém o afirmou num ensaio crítico, podem ser uma representação da teoria de Einstein e o princípio de Walter Heisemberg, respectivamente a da relatividade e o das incertezas.
Neste conto, de facto, o que parece ser irreversível, repleto de certezas, porquanto o enredo assim exige a sua realização, e o leitor assim espera, afinal vem a verificar-se estar à mercê de um simples acaso do tempo e do espaço. E o desfecho é relativo. E o que se previa como comportamento futuro da intriga do conto, o seu desfecho, não acontece pelo princípio da indeterminação.«- Vamos, Al - disse Max - É melhor irmos embora. Ele já não vem.»«- O melhor é dar-lhe mais cinco minutos - disse Al da cozinha.» (3)


(1) Vd. «Matadores», in Bestiário-Revista de Contos, nº 10, Dezº 2004
(2) José Guilherme Merquior, in Formalismo & Tradição Moderena, Editora Forense-Universitária, S.Paulo, 1974
(3) Contos de Nick Adams, Edição Livros do Brasil, Lisboa, pág. 62

in Bestiário, Revista de Contos, Brasil.

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