João Cabral de Melo Neto (1920-1999), poeta do Brasil e diplomata, figura representativa e polémica - sempre indisposto contra coisas do seu tempo e da literatura - da Geração de 45, foi, sem dúvida, na quase totalidade da sua obra poética, um desconstrutor de paisagens.
Depois do conhecidíssimo poema “Morte e Vida Severina” e dos cemitérios nordestinos reduziu a paisagem brasileira, social e humana, ao grau zero da existência.
Ele próprio afirmou, pouco antes de morrer, num canal de televisão brasileiro, em entrevista concedida já às escuras - estava quase cego - que fazia poesia com linguagem irónica, sem pena ou lágrimas, que iriam favorecer os cruéis.
Com efeito, J C M N assumiu o compromisso poético social com os excluídos, os deserdados do tecido sócio-económico brasileiro, aqueles homens, mulheres e crianças do Nordeste que sofreram a seca e deram azo a que se escrevesse sobre a geopolítica da fome. Desequilibrou - embora a ideia fosse ao contrário da sua Geração de 45 - os excessos literários do Modernismo brasileiro, enriquecendo no entanto o processo criador juntamente com outro grande poeta social, o autor de Rosa do Povo, Carlos Drummond de Andrade.
Nesta linha de procurar fazer os leitores reflectirem sobre as paisagens da morte, com rostos humanos sofredores - só com um paralelo em algumas grandes telas de Portinari -, criou com certeza inimizades literárias, rarefez o ar social de Pernambuco ao descrever, recriando pela desconstrução do símbolo, da imagem e do referente, os cemitérios nordestinos, por exemplo, neste poema em que ironiza com a morte :
“ Nenhum dos mortos daqui / vem vestido de caixão. / Portanto, eles não se enterram, / são derramados no chão.”
E causou obviamente polémicas, por vezes derivadas da sua tendência para a teorização, mal aceita pelos seus companheiros da Geração de 45, segundo os quais Melo Neto “era um teórico de formação anémica”. Em certo momento, as reacções foram de tal forma deselegantes que, na Revista de Poesia e Crítica, nº 7, de 1981, um dos articulistas afirmou “melhor mesmo é deixar Cabral com o seu realejo de repetir Severinos, ovos de galinha, engenhos, engenhos, ovos de galinha, Severinos.”
Sem dúvida que a grande poesia de ´João Cabral de Melo Neto é formada da repetição até à descontrutividade de um certo Brasil humano que foi tão dramático nos anos 40-60, o dos retirantes em que só o suor não secou, como agora são dramáticas também as realidades das Favelas, dos meninos da rua, dos massacres da Candelária. As paisagens, geofísicas e sociais, reduzidas a zero, pela visão do poeta autor de O Engenheiro, estão, de facto, patentes nos seus versos maiores, como o já referido Morte e Vida…, mas não apenas. Também surgem com enorme força em poemas do livro generalista Educação pela Pedra, ou em poemas dos livros que obedecem ao mesmo compromisso social, como Dois Parlamentos ou O Cão sem Plumas. Exactamente porque a plasticidade dos poemas de Melo Neto é toda nordestina, é a descrição de uma “paisagem zero”, que é no dizer do poeta a terra varrida de defuntos.
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