terça-feira, setembro 30, 2008

Poéticas da Retórica (2)




II - ETHOS

“(…) estava nu e escondi-me”
(Génesis 3:10)


Despido pela culpa
há um medo sólido
e denso
a sufocar a garganta
do ser pensante

o trauma da falha
a consciência do mal
procuraram as árvores do jardim
mais cerradas
impenetráveis

a não ser para os olhos longos
com que a Ternura
ainda hoje me envolve.


Palmela, Setembro de 2008



(Brissos Lino)

segunda-feira, setembro 29, 2008

Yusef Komunyakaa

Elegy for Thelonious

Damn the snow.
Its senseless beauty
pours a hard light
through the hemlock.
Thelonious is dead. Winter
drifts in the hourglass;
notes pour from the brain cup.
Damn the alley cat
wailing a muted dirge
off Lenox Ave.
Thelonious is dead.
Tonight's a lazy rhapsody of shadows
swaying to blue vertigo
& metaphysical funk.
Black trees in the wind.
Crepuscule with Nellie
plays inside the bowed head.
"Dig the Man Ray of piano!"
O Satisfaction,
hot fingers blur on those white rib keys.
Coming on the Hudson.
Monk's Dream.
The ghost of bebop
from 52nd Street,
footprints in the snow.
Damn February.
Let's go to Minton's
& play "modern malice"
till daybreak. Lord,
there's Thelonious
wearing that old funky hat
pulled down over his eyes.

(Yusef Komunyakaa)


Elegia para Thelonius

Dane-se a neve.
A sua beleza sem sentido
derrama uma luz dura
através da pala dos arbustos.
Thelonius morreu. Inverno
a cair lentamente na ampulheta;
notas derramadas da taça do cérebro.
Dane-se o gato do beco
que geme silenciosos cantos fúnebres
para além da Avenida Lenox.
Thelonius morreu.
É uma vagarosa rapsódia de sombras esta noite
arrepiando até à vertigem um blue
& um funk metafísico.
Tal as árvores negras no vento.
Crepuscule with Nellie
a tocar na cabeça reverente
“Eis o Man Ray do Piano!”
Ó Satisfação,
dedos ardentes ofuscam o marfim nas teclas.
Coming on the Hudson.
Monk’s Dream.
O fantasma do bebop
da Rua 52
deixa pegadas na neve.
Dane-se Fevereiro.
Vamos até ao Minton’s
& tocar "maliciosamente"
até à alvorada. Senhor,
aqui está Thelonious
com aquele velho chapéu discreto
sobre os olhos.

(Trad. J.T.Parreira)

sexta-feira, setembro 26, 2008

Poéticas da Retórica

«Escrevi uma trilogia, 3 poemas sobre os 3 pilares da Retórica no mundo antigo: o Logos, o Ethos e o Pathos. Envio-te estes 3 inéditos para, querendo, usares como achares melhor.
Grande abraço.
Brissos»

Hiéron, Tirano de Siracusa (séc. V a.C), proibiu, como um requinte de crueldade sistémica dos ditadores, o uso da fala. Tornados assim conscientes da importância da fala, os sicilianos terão criado a Retórica. Da lenda manteve-se, desde Platão, a necessidade de persuadir pela excelência da linguagem, da arte de bem dizer.

I - LOGOS

“No princípio era o Verbo.”
(Evangelho de S. João 1:1)


No princípio era a Voz
mais a sua significância
o inteligível romper do silêncio cósmico
sustentado na eternidade

no princípio era o instaurar da Vida
a partir do pó da impossibilidade
harmonia projectada
por um pneuma desconcertante

no princípio era a opção da escolha
a probabilidade da imperfeição
o direito ao erro.


Palmela, Setembro de 2008

(Brissos Lino)

quinta-feira, setembro 25, 2008

Momento em Naim

Quadro antigo, desconhecido

Quando o enterro passou
as lágrimas que estavam
nos olhos da mãe, mais
viúvos ainda
bateram em quem
saudava um filho morto
Os prantos do luto
batiam na vida que circulava
na vida que diante da morte
fica nua
Quando num gesto largo Jesus
o esquife para, é a alma que corre
e sai da sombra
da morte surpreendida.


9/2008

terça-feira, setembro 23, 2008

Intertextualidade no discurso do Poeta

*Intertextualidade: o discurso do poeta não é uma unidade fechada.


OS CORVOS

“Os corvos eram bandeiras
nos mastros da manhã.”
(J. T. Parreira)

Os corvos são bandeiras
[negras
de navios piratas
buscam o seu tesouro
por entre espigas douradas
nas searas
e as ilhas que são
as chaminés do casario

regurgitam um grasnar irritante
uma espécie de uivo roufenho
de mau presságio
que escoa por um bico negro
de viúvo.

22/9/2008

(Brissos Lino)
*Pomar, Edgar Poe, Fernando Pessoa e o Corvo, 1985

segunda-feira, setembro 22, 2008

Conto Curto

A car door slamming in the night
John Ashbery


Os teus ruídos
chegaram a casa

A casa encheu
de luz
as janelas

Uma corrente de ar
nas cortinas

voou o vento
quando tornaste
a sair

do silêncio.



(Sobre o poema "Regressos", de 2006)

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in Cronópios
A poeta e tradutora Flávia Rocha conta-nos sobre sua experiência com a poesia de Yusef Komunyakaa. Confira na coluna AMERICAN WAY.

quarta-feira, setembro 17, 2008

Suicídio de Van Gogh

Os corvos eram bandeiras
nos mastros da manhã

Um céu vivo, azul
sem desespero

Já devíamos desconfiar
por não haver um fio de água
e o rio ser uma seara
de trigo
no caudal do vento

Devíamos lembrar Van Gogh
muitas tardes com olhos sozinhos
diante da linha irregular
do céu e da planície rasa.

17-9-2008

terça-feira, setembro 16, 2008

Elos de Poesia II - Lisboa - Academia de Recreio Artístico

AFINAL NÃO HOUVE, SERÁ MAIS TARDE.


No dia 18 de Setembro às 18H00, vai ter lugar na Academia de Recreio Artístico (Rua dos Fanqueiros, 286 - 1.º - Lisboa), o lançamento do livro "Elos da Poesia II", Colectânea de Poemas de Autores de Língua Portuguesa (Coordenação de Manuela Rodrigues e Fernando Oliveira).

Setembro

Well, you can do anything
but lay off of my blue suede shoes
Carl Perkins

Começa Setembro a mudar
de roupa para o Outono

Vamos recordar-nos
e esperar o próximo Verão
dentro de um jarro
de sangria, recuperado
o ânimo que o sol e o mar
sempre trazem nesses dias

Mas ainda estamos longe
desses brilhos e quem sabe
se teremos tempo para
cada vez mais ao sul
os procurar de novo
aos nossos sapatos
esses sapatos de camurça azul.

15/9/2008

sexta-feira, setembro 12, 2008

Intertextualidades

BlockquoteTodo o texto se constrói como mosaico de citações - Julia Kristeva
Poema inédito, recebido ontem do meu velho amigo Brissos Lino:

AS VEIAS

“Os rios não envelhecem
como as nossas veias.”
(João Tomaz Parreira)

As veias são rios internos
que carregam as dores dos homens

enchem e vazam
como as marés
segundo o parecer do coração
os humores do momento
os desvarios da boca
e do corpo

cansam-se na tarefa interminável
e pesada
de manter a vida erecta.


Palmela, Setembro de 2008

(Brissos Lino)

quarta-feira, setembro 10, 2008

Porto de Ponta Delgada

(Infância em 1957)

Na data da chegada dos navios
a saudade
voava no cordame
atava o movimento
do navio à pedra lavrada
de silêncios

no cais cheio de olhos
pousado no oceano

no meio do vozeario
só a espuma, sozinha
vai e vem, e branqueia
os limos e os sonhos

Depois tudo ficava
de novo imerso nas ausências.

8/2008

sábado, setembro 06, 2008

Intratextualidades

A consideração do poema na confissão de Andrade:

Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
Ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakóvski.

(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, setembro 03, 2008

Vilegiatura (I) e (II)

Não posso esquecer.
Um dia me mostraste
as ondas, rajadas de mar
que seca na praia.

14/8/2005


Chegam em revoadas as brumas
a aldeia encerra os rostos
das janelas, fecham os cordeiros
dentro da boca os seus balidos

O dia revê-se nos espelhos
quando chega a noite
quando os olhos se recolhem
de todos os sentidos

É o vento que cerca o lume
nas candeias, mas só as adormece
a infinita mão.

24/7/2005