quinta-feira, março 11, 2010

As mesmas teclas de Eugénio de Andrade



Tu já tinhas um nome e eu não sei

se eras fonte ou brisa ou mar ou flor

nos meus versos chamar-te-ei Amor


Este madrigal de apenas três versos de Eugénio de Andrade reflecte o que a sua poética possui, entre múltiplos achados, de lirismo da repetição como um acto criador.
A meu ver, uma das características marcantes da poesia do autor de «Obscuro Domínio» é esse andar de palavra em palavra, sugando-lhes o tutano ( ou melhor, para o estado lírico da palavra poética, sugando-lhes o mel), repetindo-as desde 1942, para desencantar o cerne da Poesia.
Esta é, na verdade, a tarefa em que o poeta se reedita, com feliz pertinácia, como ele próprio declarou, em 1971, na obra acima referida: «Recomeço no coração da pedra a juntar palavras».
Ciente da dureza da pedra, nela trabalha para arrancar formas onde o sol da poesia possa estender-se, trabalho de mineiro ou de escultor, é, curiosamente, noutro coração que o poeta repousa, no coração do lume: «Amo o repouso no coração do lume», embora aqui esteja a designar um fruto, a romã.
Esta é também uma das características da poesia de Eugénio, sublinhada há duas dezenas de anos por outro grande poeta, Ramos Rosa, a qual consiste na procura da génese ou núcleo do universo «que seja ao mesmo tempo matriz orgânica e linguagem viva.»
Assim, o descanso do poeta é procurar a palavra, trabalhar a palavra, repetir a palavra. Desta maneira, com o seu segundo livro «As Mãos e os Frutos» - de resto, o primeiro fundamental de uma vastíssima bibliografia - até ao mais recente ( no momento em que escrevo, será «Os Sulcos da Sede», de 2001, o último que li), o poeta insiste em percorrer os seus vocábulos de textura material, para desta se libertar até a palavra ser signo puro, sempre sob o impulso de um vocábulo de acção que é recorrente na linguagem do poeta: recomeço.
E as palavras, que se repetem, começaram por vir de longe, porquanto na obra de Andrade predomina a visão e a memória. Os vocábulos eugenianos vêm da matéria e do que é imaterial, vêm dos elementos da natureza e do universo, da sua mecânica celeste.
Mãos, dedos, olhos, rios, fontes, choupos, juncos, folhas, espigas, feno, erva, rosas, pólen, frutos, romãs, laranjeiras, aves, cavalos, lume, fogo, luz, verde, carmim, púrpura, brisa, dança, flauta, montes, nuvens, astros, estrelas, luas, charcos, a noite e a madrugada.
Poderia continuar pelo seu léxico fora. A própria dimensão do espaço, que às vezes é físico, outras psicológico, na poesia do autor de Ostinato Rigore é também recorrente ao termo «longe» ou à palavra «fundo».
Em «Obscuro Domínio», obra já muito distante, escrevia o poeta: «Vejo ao longe os meus dóceis animais», noutro livro muitíssimo mais perto, no tempo, escreve: «Veio de longe, e mal chegou
partiu para mais longe ainda» («Os Sulcos da Sede»)
Por vezes sentimos na sua poesia que existe como que um apelo, uma exigência das palavras para figurarem exactamente no poema. Um dos maiores críticos literários portugueses, e especialmente da obra do nosso poeta, Óscar Lopes, certificou essa recorrência ao escrever «que às vezes, e de repente, sentimos que, pelo contrário, estão as frases, as palavras, a utilizarem-nos como se fôssemos nós, e não elas, a servir de veículos para certo sentido». (prefácio à velhinha Antologia Breve, Colecção Duas Horas de Leitura, 13, da extinta Inova, 1972).
O exercício da leitura da poesia de Eugénio de Andrade é igual hoje, em 2005, ao que foi, com certeza, em 1942, um percurso musical sobre as mesmas teclas.
2005

1 comentário:

hfm disse...

Um belo percurso analista que gostei muito de percorrer e que subscrevo. Obrigada!